Hoje foi Dia da Criança. E a parte boa de ser pediatra é a de assistir a esta celebração recheada de magia num ambiente que tantas vezes é austero e triste. É ver o brilho nos olhos das crianças internadas com as surpresas que vão surgindo, o agradecimento que fazem quando lhes é oferecido um mimo, os sorrisos que surgem genuinamente sem esforço.
Vou começar por falar-vos do L.. Um menino evacuado de Cabo Verde de apenas 4 aninhos e que está internado há mais de 90 dias no serviço onde estou atualmente a trabalhar. O L. tem uma doença difícil e dependente de tratamento hospitalar para sobreviver. O L. tem de estar isolado dos outros meninos num quarto fechado e com cuidados especiais. O L. enche-nos o coração todos os dias com a sua boa disposição habitual, com as suas gargalhadas, fantasias e também nos seus shows de dança que nos presenteia, com uma jiga que faz inveja, embora de fios sempre a ele ligados. O L. tem dias menos bons, em que sente o desespero de estar há tantos dias sem casa, farto de ver as mesmas quatro paredes, em que se vira de costas, fica amuado, grita e não nos quer ver. Os dias bons do L. são bem mais que os maus. E todos os profissionais, de diversas áreas que com ele interagem, tentam proporcionar-lhe a cada um dia um melhor que o anterior. O tratamento que lhe é oferecido diariamente permite-o estar assim – bem, mas só. Bem, mas dependente de cuidados que não lhe conseguem ser oferecidos em casa e que terá um fim que não é o que todos gostaríamos que fosse. É difícil trazer esperança à família do L., que vive cada dia como se fosse o último e que, espantosa e incrivelmente, vive-os com alegria e gratidão.
Hoje foi dada a oportunidade ao L. de sair do quarto, com duas máscaras cheias de desenhos postas na sua pequena face, para ser levado até à sala de atividades do piso do internamento. Ficou à porta da sala, a participar à distância e a ver as outras crianças de longe, sem poder tocá-las ou partilhar com elas os brinquedos expostos. Mas esteve presente na celebração do Dia da Criança. De chupa-chupa na mão, assistiu alegremente ao concerto dos Calema (e tirou fotografia com eles no final, junto à sua mãe), viu a estrela do Make a Wish e as personagens do Star-Wars. Esteve envolto na alegria contagiante que se fez sentir e foi abraçado e acarinhado pelos profissionais que por lá passavam. Hoje foi um dia bom para o L. e para nós, que o vimos feliz.
Quando escolhi ser Pediatra, sabia que ia assumir o compromisso de trabalhar com crianças para o resto da vida. Sabia que teria de lidar com a doença, com o sofrimento e com a dor de quem mais queremos proteger do mal. Teria de lidar com as dúvidas, angústias e medos dos pais.
O que eu não sabia e fui aprendendo ao longo desta minha prática, foi a forma de comunicar com os pais e a forma de estar com crianças doentes. Fui aprendendo a oferecer conforto e a dar segurança a um pai ou a uma mãe que vive esperançosamente cada segundo de tratamento dos seus mais que tudo. Fui aprendendo a responder às suas lágrimas, a gerir a sua raiva, a conversar sobre maus prognósticos, a comunicar más notícias, a oferecer uma palavra amiga e a ficar grata quando lhes consigo dar alta para casa. Aprendi a dar esperança, sem criar falsas expetativas.
Não sabia que ia ser tão gratificante poder acompanhar crianças e suas famílias. Que cada vitória dos miúdos em ambiente hospitalar era também vitória dos graúdos – dos pais e dos profissionais que os acompanham - na dor que alivia, na febre que cessa, na comida que ingerem, no peso que ganham (ou que perdem), na doença que desaparece ou se atenua. Que ia ficar genuinamente feliz por cada batalha vencida por eles, por vê-los crescer, superar. Não sabia o quanto ia sofrer. Com cada desgosto de um pai ou mãe que vê perdida a esperança que depositava nas suas rezas. Não sabia o quanto ia sofrer com vidas a serem roubadas cedo demais, depois de tudo ser feito para lhes dar mais anos livres de doença.
Não sabia que ia crescer tanto quanto cresci. Que ia ter eu oportunidade de ser criança com eles todos os dias. Não sabia que ia rir às gargalhas com as suas saídas, que ia fazer cócegas e desenhos nas plantas dos pés. Que ia ser um super-herói, que ia jogar à bola, que ia fazer de princesa a receber um banquete imaginário. Que ia participar em festas, ver balões e sorrisos. Muitos sorrisos. Que ia observar as aquisições de competências e desenvolvimento dos mais pequenos e ter conversas profundas e filosóficas com adolescentes, acompanhando-os a todos eles na descoberta sobre si próprios e sobre o mundo que os rodeia. Que ia brincar. Muito. Que ia aprender a fazê-lo de novo, com crianças dos 0 aos 18 anos, adaptando-me às diferentes faixas etárias e etapas por que passam, com os diferentes níveis de maturidade individuais e os graus infinitos de imaginação.
Não sabia que hoje, enquanto escrevo deitada no meu sofá, ia estar a sentir os primeiros movimentos do meu bebé que faço crescer dentro de mim. Que ia estar ansiosa pelo dia em que vou poder vê-lo ser criança a celebrar vida deste lado, da forma como sou ensinada a fazê-lo todos os dias com todas as crianças com quem tenho a oportunidade e o prazer de trabalhar.
Feliz Dia da Criança!
Diário de um interno 01.06.2022
Comments