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Foto do escritorCarolina Germana

Roleta russa



Novembro.


Para onde voou o tempo?


De sofá e manta, aqueço as mãos na chávena de chá quente ao som da lareira. Lá fora, continua o dia sombrio, com nevoeiro a cobrir o horizonte sem permitir olhar o mar. Pintam-se gotas de chuva nas janelas fechadas, que não deixam entrar o vento.


Para onde voou o tempo?


Voltamos a ser confrontados com a incógnita que é o futuro e voltamos a nos debater com a razoabilidade e necessidade de mais medidas de restrição e contenção do vírus que ainda nos é tão desconhecido. Circulam as teorias da conspiração e os iluminados em ciência, medicina, números e estatísticas, vindos de todo o lado. Partilham-se infinitas informações e desinformações, qual dela a mais correta? Aparecem mais e mais testemunhos de pessoas infetadas, conhecidos ou não, ignorando os efetivamente graves, internados ou ventilados, que carecem de visibilidade.


Seguimos a ignorar os peritos, instituições e cientistas. A razão circula em cada ser que se acha pensante, por ser mais fácil e tranquilizador ignorar a verdade e pensar que sim, vai ficar tudo bem.


Mas já é tempo de aceitar. Que o cenário mudou. Que 2020 é roleta russa a deixar rolar e que segue a disparar em todas as direções.


Talvez não esperássemos que chegasse tão cedo a necessidade de calçar a bota e o casacão. E ninguém nos preparou. Continuamos a caminhar de top de alças e sandália nos pés, querendo à força continuar aquilo que o verão nos proporcionou.


Mas o cenário mudou. E já não estamos no réveillon a começar 2020, cheios de metas por cumprir, planos e acontecimentos por celebrar, cheios de viagens por fazer e mundo por conhecer. Já não estamos em fevereiro a receber a notícia de uma epidemia na China a propagar-se pela Europa, nem estamos em março quando sentimos na pele os primeiros efeitos da já pandemia em Portugal.


O cenário mudou.


Já não estamos em maio em pleno estado de emergência a cozinhar pão, a partilhar vídeos divertidos nas redes sociais, a cantar, dançar e a bater palmas aos profissionais de saúde e demais trabalhadores que nos mantiveram a todos vivos no meio do caos. Já não se pintam arco-íris nas janelas e já não se anseia pelos dias quentes e longos. Já não estamos em pleno verão, a sentir o calor nas esplanadas, a pôr o pé na areia e mergulhar no mar, rodeados de amigos e família.


O cenário mudou.


Chegou a época outono/inverno. E temos de fazer a troca do guarda-fato. Rápido para não encharcar o pé de havaiana na poça e sair de guarda-chuva para não nos molharmos.


Temos de aceitar que o cenário mudou. E agora sim, o verdadeiro desafio. Deixar de desfilar pelos campos de batalha de sorriso no rosto, enquanto os soldados tentam manter viva a alma que leva com o cartucho ameaçador de vida. Estamos em guerra, cada vez mais visível. E não convém nos esquecermos do nosso principal oponente: este ser vivo que nasceu, cresceu e se disseminou entre nós e que provocou consequências em todas as áreas do ser, saber e fazer que conhecemos. Lembremo-nos também que ele chega a todos e qualquer um, independentemente de todas as medidas que, apesar de garantidamente apaziguadoras, não são milagrosas e a roleta russa não escolhe a vítima a dedo. Direta ou indiretamente, estamos ou vamos ser todos afetados e dificilmente haverá game over na transição para o novo ano.


Precisamos então de nos unir em vez de nos distanciarmos com estigmas, culpabilização, debates políticos sem rumo e teorias sem fundamento. Precisamos de bondade e do apoio incondicional dos nossos por perto. Precisamos de rastrear a informação que nos chega. De segurança e calma. Precisamos de razoabilidade e responsabilidade. Precisamos de fazer escolhas eventualmente mais difíceis. E precisamos de carinho, de afeto e de zelar pela nossa saúde mental por diversas vias.


Estejamos atentos a nós e ao próximo. Protejamos os mais frágeis. E não esqueçamos que estamos todos no mesmo barco que anda há meses à deriva, sabendo que se avizinha tempestade no mar. E estamos cansados. Estamos todos cansados. Permitam-nos sim dizê-lo e senti-lo. Permitam-nos analisar esse cansaço e arranjar forças para continuar com a responsabilidade e serenidade que este cenário nos exige, unidos.


Entretanto, tentaremos atravessar o outono com um chá reconfortante e o cheiro a castanhas assadas no forno. Com um filme visto no conforto do sofá, embrulhados na manta ou a ler um livro na poltrona. Rodeemo-nos daqueles que achamos serem essenciais para nos abraçar a alma E aguardemos pela tempestade passar.

 

Diário de uma pandemia 01.11.2020

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