O famoso dia de “Thanksgiving”, comemorado essencialmente pelos americanos, é um dia em que se pratica a reflexão e o agradecimento pelos bons acontecimentos ocorridos durante o ano.
Em Portugal não temos o hábito de festejar este “Dia da Ação de Graças”, mas decidi dar uma oportunidade ao seu conceito base neste ano tão atípico prestes a terminar e que tantas vezes ouvimos ser o ano “mau”, “diferente”, “novo normal”.
Esta prática de procurar o que há de positivo num momento, numa experiência, numa pessoa ou relação, já é algo que tento fazer no meu dia-a-dia desde sempre – encontrar o que há de bom e de que forma essa faceta pode superar ou ultrapassar o lado menos bom. Há alturas mais difíceis de o fazer e este ano foi particularmente desafiante, tendo por vezes demorado algum tempo em busca do que precisava para recuperar o meu equilíbrio.
Apesar das mil e uma mudanças de rotina, algumas seriamente drásticas, principalmente na relação interpessoal, na forma de trabalho, nas atividades diárias de miúdos e graúdos, no isolamento dos mais idosos, na economia e na cultura, mantivemos oportunidades de construir memórias boas, de vivenciar momentos de aprendizagem, de alegria e de crescimento.
Decidi fazer uma viagem pelas fotografias que guardo de todo o ano e que eternizam momentos para quando a memória me escapa. No final, sorri para o ecrã, satisfeita por ter conseguido ser transportada para onde fui feliz, várias vezes, neste 2020.
Comecei o meu ano com várias visitas a Lisboa, junto da minha família; festejei os 78 anos da minha avó rodeada de carinho e abraços; vi o “Lago dos Cisnes” no coliseu de sala cheia; fui pela primeira vez experimentar vestidos de noiva acompanhada da mãe, primas e amigas, neste ritual especial; tive vários encontros com amigos entre abraços, brindes e pés de dança; mudei para uma casa nova à beira-mar e passeei por sítios bonitos.
No final de fevereiro, decidi à última da hora acompanhar os meus queridos primos irmãos numa viagem a Andorra, nove anos depois da última vez, e esquiei como se não tivesse parado, a aproveitar cada segundo de pista e rodeada de gente boa. Ainda consigo ouvir o som do ski a rasgar a neve e o cheiro do chocolate quente na esplanada…
Seguiram-se de imediato os primeiros casos de Covid-19 na Europa e em Portugal e o espalhar do vírus pelo mundo. Tive a sorte de ter o A. sempre por perto, como âncora de toda a primeira dose de incerteza, a acalmar o medo e a fazer sorrir. Assisti a uma onda de solidariedade nunca antes vista, ao se unirem gregos e troianos, que por intermédio da música, da dança e de desafios pelo mundo digital, tocaram corações de todas cores e feitios e fizeram com que fosse mais fácil a jornada através do desconhecido.
Em pleno estado de emergência, vi o sol mergulhar no mar da minha varanda quase diariamente, nos cada vez mais longos dias primaveris, com um gin que os acompanhou de vez a vez. Usei as videochamadas a meu favor e reuni com amigos virtualmente todas as sextas e sábados à noite, com conversas pela noite dentro e copo de vinho da mão. Assisti à capacidade de adaptação e de resiliência de toda a humanidade nesta nova realidade que se instalou sem ser chamada. Tive uma Páscoa com surpresas à porta e surpresas à mesa com um belo leitão e um vinho especial, convivendo com a família de longe entre ecrãs, ao som da guitarra e a cantar até o sol se pôr.
Num necessário regresso à vida corriqueira de todos, a sensação de liberdade que foi poder sair. Ir tocar o pé na areia e acariciar o mar. Ir até ao Porto, comer uma francesinha e estar novamente com amigos num jantar diferente do habitual. Ir até Lisboa e fazer surpresa à mãe, irmãos e avós. De os ver a todos bem e de arranjar formas seguras de conviver e confraternizar espalhados pelo relvado. De voltar a estar rodeada de amigos e de conseguir com eles festejar datas chave.
Fui enfim até à ilha, em pleno verão, e festejei o meu aniversário junto da restante família de quem matei saudade. Aproveitei os dias de calor, com banhos de sol e mergulhos de piscina e mar em todos os fins de semana que tive livres de trabalho. Mais pores do sol e picnics no parque. Vi o nascer do sol das montanhas e sob o areal, em dias épicos sem igual. Desci o Rio Vouga de caiaque com os amigos e virei. Dormi num veleiro com a mãe e passeei.
Comecei a escrever e a conhecer-me melhor. A estar mais atenta ao outro e ao meu redor. Comecei a nutrir-me de forma mais consciente, a mexer mais o corpo e a recuperar de lesões. Aproveitei a minha casa e a “minha praia”, com caminhadas a ouvir as ondas, a sentir o soprar do vento fresco e suave, por baixo de céu azul e calor reconfortante.
Trabalhei com os meus colegas amigos, e uns aos outros fomos dando colo e conforto em épocas mais difíceis, reunindo e rindo sempre que possível. Fiquei a adorar a vista do nosso piso 7 sob a foz do Rio Lima e a baía do Cabedelo, na companhia das gaivotas sob os parapeitos das janelas.
Vivi dois dias muito especiais - o 12 de setembro e o 10 de outubro. Dias que, se pudesse, guardava dentro duma bolha de amor para reviver para sempre.
Hoje começa o último mês do ano e estou de regresso a casa na ilha, onde terminarei o meu ano de 2020. No ninho. Faltam-me alguns elementos, que irão chegar em breve, para me sentir realmente completa. Sentada no conforto do sofá, como castanhas assadas no forno com o barulho intenso da chuva e trovoada lá fora.
Estou grata. Esta prática de olhar para dentro, e ver tudo o que de bom aconteceu no último ano, permite-nos relativizar o que se passa em nosso redor. Todos tivemos o mesmo trigger para o turbilhão de emoções e acontecimentos deste ano, mas todos vivemo-lo de forma diferente, uns com muito mais dificuldades, sofrimento e perca e assim continuará infelizmente a acontecer neste que é um dos maiores desafios vividos por esta nossa passagem pela Terra até à data.
Podermos fazer esta introspeção, permite-nos olhar para o outro, melhor ajudar quem sofre e apoiar quem de nós precisa. Façamo-lo com sinceridade para nos apercebermos o quão fomos e somos afortunados, numa abertura que nos deixa livres para ser feliz.
Diário de uma pandemia. 1.12.2020
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