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Foto do escritorCarolina Germana

Parte III - O que ninguém nos diz


Comecei o meu internato de Pediatria a sonhar com um mundo cor-de-rosa. Um clássico de quem começa a trabalhar numa área que gosta. Ciente de que seria preciso trabalho e dedicação, eu queria era estudar, observar e começar a aplicar na minha prática diária aquilo que ia aprendendo. Depois de 7 anos, ia finalmente poder ser médica a sério.


Rapidamente apanhamos um balde de água fria. Outro clássico. Esqueceram-se neste anos todos de nos preparar para o que é ser interno e fazer um internato nos dias que correm.

Ninguém, em tempo algum, nos diz o que é que é preciso fazer para nos tornarmos “médicos especialistas”. Ouvimos uns zunzuns de que ao longo desses 5 anos a mais somos “carne para canhão”, que “tapamos buracos” e que somos meios que explorados. Mas tudo bem. Vamos aprender, que é o que nós queremos, para sermos bons naquilo que fazemos. Nada contra. Haja trabalho.


Mas ninguém nos prepara para a dependência que sentimos ao longo dos primeiros anos de internato. Para assumirmos responsabilidades demasiado grandes para o conhecimento que temos. Para sermos atirados para os leões num “agora desenrasca-te” porque “é assim que se aprende”, quando tratamos de vidas humanas. Ninguém nos prepara para o medo que sentimos de errar e para esta necessidade de tomar decisões rápidas, por vezes sem a orientação devida.


Ninguém nos prepara para nos sentirmos a voltar a ser crianças de escola. Esquecendo-se que somos todos adultos formados, com ideias, ambições e convicções próprias, como se nos quisessem controlar.


Ninguém nos prepara para o trabalhinho, o trabalho e o trabalhão. O currículo e a curriculite. Se há -ITE mais difícil de tratar, é esta. Os mil e um ticks na checklist: o projeto, o protocolo, o artigo de revisão, o artigo original, a apresentação no serviço, o poster no congresso, a comunicação na conferência. Mesmo que não acrescentem um nico à ciência da atualidade. Não importa. Querem números para comprovar que mereces uma boa nota aos 30 anos para seres médica especialista e tratares doentes.


Ninguém nos prepara para o dinheiro que gastamos em formações no exterior, aquelas que não nos dão nos nossos hospitais de formação. Deslocações, estadias, refeições. Já lá foi a época das vacas gordas em que os delegados de saúde ofereciam mundos e fundos à classe médica. Não cheguei a ter essas regalias. E mais, estas formações pagas por ti, também contam para o currículo. Check, check, check. Quanto mais cifrões deres, mais te valorizam.


Ninguém nos prepara para a guerra, para a competitividade, para o egoísmo dos teus próprios colegas de trabalho, num jogo de egos e de poder.


Ninguém nos diz que é preciso trabalhares para seres boa interna e não para seres boa pediatra.


Há coisas que gosto efetivamente de fazer. Gosto de pensar em projetos, delinear protocolos e pô-los a mexer. Gosto de transmitir conhecimentos aos mais novos, de receber alunos e orientá-los. E gosto de estudar, mas sinto que tenho pouca disponibilidade para o fazer, sempre a pensar que tenho de completar outra tarefa qualquer pendente para o currículo. Não gosto de escrever artigos e da trabalheira que dá desde a pesquisa bibliográfica até à submissão numa revista. Horas e horas e meses de trabalho, para ser só e simplesmente mais um número. Não gosto de estatística. Não gosto de dar aulas em frente a uma plateia, sabendo que mais de metade não me está a ouvir.


É certo que na vida não fazemos sempre aquilo que gostamos. Que nem tudo acontece como queremos. É certo que tem de haver cedências, entreajuda e respeito, vivendo em sociedade. Há pessoas que não gostam do que eu gosto. E que gostam do que eu não gosto. Que tal unir-nos e juntar o útil ao agradável, formar equipas e dar uso à diversidade, variabilidade e individualidade de cada um? Não entendo esta insistência em sermos todos iguais e sermos avaliados por check-lists e números no papel.


Estou envolvida no sistema que nem bola de neve. Porque “sempre foi assim”, porque “os outros também passaram pelo mesmo e sobreviveram” e porque “tem de ser”.


E tem de ser. Sem desistir.


Há naturalmente, todo um outro lado da moeda a esta história. O lado bom e as pessoas inspiradoras que conheces ao longo do teu percurso, que te fazem acreditar que tudo é possível e que não te deixam baixar braços. Os amigos que fazes e que te acompanham nos altos e nos baixos, te dão colo e abraços e não te deixam cair.


Mas hoje escrevo o lado que ninguém nos diz.

 

O interno escreve - 26.05.2020

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