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Foto do escritorCarolina Germana

Parte II - Pediatria é cor, é vida, é alma

Último ano como estudante de medicina. Ser finalista no Porto foi das experiências mais bonitas que vivi. O cortejo, o baile, a queima das fitas. A cartola e a bengala. Os sussurros com desejos de sucesso na vida futura dos teus amigos mais próximos e companheiros de toda uma jornada. Foi vivido e bem vivido aquele 6º ano.


Tese de mestrado e exame de acesso à especialidade. De julho a novembro sentada numa cadeira a engordar e a ficar com celulite, nas 10 horas diárias de estudo. Rodeada de post-its de todas as cores e feitios. Folhas sublinhadas que nem arco-íris. Papéis espalhados por todo o canto. Acordar, comer, estudar, dormir. Repete. Um ritmo louco para poder escolher a especialidade que me tinha motivado entrar em Medicina – Pediatria.


Ao longo do curso, interessei-me por outras coisas também. Infeciologia, endocrinologia, obstetrícia e até cirurgia geral. No ano comum (ano de internato geral), 7º ano de formação desde o seu início, já médicos inscritos na Ordem e já a receber, integramos equipas nos hospitais e passamos um ano entre os grandes pilares da medicina: Medicina Interna, Cirurgia Geral, Pediatria e Medicina Geral e Familiar.


Na Cirurgia Geral, gostava do identificar de problemas e da sua resolução de forma mecânica, técnica, literalmente com as próprias mãos.


Na Medicina Interna, a diversidade de patologias, o contacto com os mais idosos e também com a morte. A primeira vez que senti a perda e a primeira vez que comuniquei más notícias. Foi também aí que me conectei de facto aos doentes, que os conheci, que conversei durante horas com quem tinha tanto por contar. Ali vi a entrega, a oferta de qualidade de vida e de conforto. Vi esperança, mas vi também muita dor.


Na Medicina Geral e Familiar, conhecer a família, os problemas sociais, as diferentes comunidades e minorias. A prevenção da doença. O rastreio. O tratamento de doenças crónicas. A parte burocrática necessária: as baixas, as receitas, os relatórios.


E depois a Pediatria.


Paredes pintadas a cores. Bonecos desenhados. Olhares espantados, curiosos, observadores. Ver o ser humano no seu primeiro dia de vida na saída do conforto da barriga da mãe e a sua adaptação ao mundo cá fora. Acompanhá-lo nos seus primeiros anos, orientar os pais ao longo desse percurso, acalmar as febres e tratar os comuns “-ites” dos infECtários. Poder dar algum conforto nas doenças mais difíceis, transmitir confiança a uma mãe em sofrimento, distrair e divertir uma criança doente.


Assistir ao regresso do sorriso, da energia e do brincar depois da nossa intervenção. As conversas divertidas, a descoberta dos sentidos e a idade dos porquês. A criação de situações e seres imaginários para fazer ser menos dolorosa uma pica. O acalmar com o sorriso e um olhar, para poder ouvir o coração. Ver as formiguinhas no ouvido, abrir a boca de leão e dar massagem na barriga.



Avaliar o desenvolvimento. O sorrir, o sentar, o gatinhar, o andar. As primeiras palavras. A descoberta das mãos e dos pés. Detetar pequenos sinais atempadamente que nos servem de alerta. Mais tarde os nervosismos, a dor de estômago e de cabeça na altura dos testes. O adolescente ansioso, problemático ou com as suas novas descobertas e aventuras que os trazem à urgência.


Tem o seu lado menos bom, é certo. Ver uma criança gravemente doente, com incapacidade ou com mau prognóstico, dá cabo de nós. Tira-nos o chão, todas as vezes. Ficamos em loop a pensar naquela bebé, naquele rapaz, naquela criança. Temos pesadelos ao adormecer e não conseguimos deixar de pensar que podíamos ter feito mais, ter descoberto antes, ter conseguido melhor para aquela criança, para aquela família. É inevitável sentirmo-nos culpados pelas derrotas, mesmo sabendo que somos tudo menos invencíveis pela natureza e pela doença que não tem cura. Por vezes ficamos tristes, abalados e é difícil transmitir esperança. Comunicar uma má notícia a uma mãe e a um pai sobre a sua criança, é provavelmente das partes mais difíceis do nosso trabalho. Dependendo das áreas a que nos dedicamos, isto pode ser mais ou menos frequente.


A minha realidade, neste momento que estou no meu terceiro ano de formação num hospital distrital, em que lido maioritariamente com a chamada “pediatria geral”, que é inespecífica, a verdade é que estas situações são naturalmente raras e ainda bem. Mas aparecem. Já as situações sociais, de abandono, as agressões físicas e psicológicas são ainda outra faceta menos boa e infelizmente ocorrem mais vezes do que deviam. E por fim, toda a doença do adolescente, das orgânicas às psicossomáticas e psiquiátricas. As tentativas de suicídio e intoxicações voluntárias. Entender e compreender esta fase da vida que para todos foi transformadora e confusa, não é fácil. Nem fácil é saber e conseguir de facto comunicar com os “teen”, conseguir intervir e modificar atitudes e estilos de vida que adotam e que colocam em risco a sua saúde, o seu crescimento e a entrada na vida adulta.


E é assim, dos zero aos dezoito. A Pediatria é a Medicina do bebé, da criança e do adolescente. A Medicina dos pequeninos, dos frágeis, dos dependentes. E por isso é também a medicina da família. Do pai, da mãe, irmãos e outros cuidadores. Cabe-nos a nós segurá-los e garantir que chegam à vida adulta com todas as competências e capacidades possíveis. Cabe-nos a nós protegê-los, vigiá-los, evitar sequelas e consequências futuras. Cabe-nos a nós prevenir a doença e orientar os pais naquele que é o maior desafio da parentalidade, que é o de proteger e fazer feliz o seu filho.


A Pediatria é cor, é vida, é alma.

 

O interno escreve - 24.05.2020

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