Uma folha em branco à minha frente. Eu, sentada numa cadeira, de frente para três cadeiras - o júri. Atrás de mim, pessoas sentadas a observar este momento. Não as vejo. Dois dias de exame em modo oral. Perguntas e respostas. Ao vivo, em direto, sala pública, onde qualquer um pode assistir.
Fez um mês que acabei, oficialmente, a especialidade.
Um mês que terminei dois dias intensos de exame, que me levaram ao extremo do cansaço. Passou um mês e ainda não consegui processar que sou, finalmente, especialista em Pediatria Médica.
O exame de fim de especialidade é o culminar de mais de uma década de estudo. Entramos para a Faculdade de Medicina, onde estudamos durante 6 anos. Na altura, fazemos uma Prova Nacional de Seriação, para acesso a especialidades (na minha altura, chamado o "Harrison"). Inscrevemo-nos na Ordem dos Médicos -e aí, somos, oficialmente, médicos. Passamos pelo chamado Ano de Internato Geral, onde passamos por valências diferentes, aprendendo a atuar perante casos mais evidentes de doença, do mais pequenino, ao mais idosos e tentamos perceber qual o nosso rumo, passando pelo dia a dia do que é ser-se médico, sendo-o, sob tutela. Passamos pela medicina interna, pela cirurgia geral, pela medicina geral e familiar, pela pediatria,.... No final desse ano, alguns de nós seguem carreira e estudo em áreas especializadas. Outros optam por serem "médicos indiferenciados", rumo a outras formas de exercer medicina que não passam pela especialização "clássica".
Eu escolhi. Pediatria. Como sempre quis.
Após o Ano de Internato Geral em 2017, iniciei então o meu percurso formativo em Pediatria, em 2018. Tinha estudado no Porto e queria continuar pelo norte do país, mas foi Viana do Castelo o sitio escolhido para começar esta jornada, num Hospital Distrital. Uma cidade pacata, à beira-mar. Aqui, pude dedicar-me à pediatria geral e ao trabalho próximo com a comunidade e com a população geral. Iniciei vários projetos no serviço, e alguns projetos de investigação que me eram queridos, estes últimos na área da obesidade infantil. Ensinei colegas mais novos e dei algumas formações a profissionais de saúde. Durante três anos, o meu foco foi o de ganhar bases sólidas em pediatria geral, e ganhei gosto pela pediatria comunitária e pela formação, não só de profissionais de saúde, mas também dá população geral.
Durante a minha formação, surgiu também a pandemia por COVID-19. Foram anos de aprendizagem, adaptação e resiliência, que não passaram despercebido a nenhum de nós e que tiveram um impacto fora de série nos profissionais de saúde. Deixou uma marca profunda na nossa forma de ser e de estar na profissão e veio levantar imensas questões, nomeadamente no que diz respeito à nossa saúde mental e àquilo que queríamos fazer da nossa vida enquanto pessoas e profissionais. A pandemia existiu para fazer tremer um sistema que já estava fraco. E hoje vemos as consequências que trouxe. Não tenho dúvidas que a pandemia veio pôr tudo em perspetiva e o que antes era amor à camisola, passou a ser amor próprio. E a dedicação a causas, por si só, não foi mais suficiente, se não fosse encontrado um equilíbrio saudável entre ser pessoa e ser profissional.
Escrevi um livro. O diário de uma pandemia - CroniCalinas. Foi assim que surgiu esta minha página. Foi na pandemia que comecei a escrever como refúgio ao meu sentir. Foi na pandemia que aprendi a olhar para mim e a ler o meu corpo e mente. Que olhei mais o outro, com olhos de ver. Foi a pandemia que me abriu olhos para aquilo que realmente (me) importa, para a vida que queria ter como minha. É um livro repleto de reflexões do primeiro ano de pandemia, quer a nível pessoal, quer a nível profissional, que traz em si ensinamentos que eu própria gosto de reler quando me sinto mais abalada. Uma perspetiva algo positiva, de renovação e renascimento, de reflexão sobre o ser e o sentir, que nos trouxe a pandemia.
Os últimos dois anos de formação em pediatria médica, para quem inicia num Hospital Distrital, passa sempre por uma passagem nos Hospitais Centrais. Nestes últimos dois anos, tive oportunidade de trabalhar em vários hospitais diferentes, como o Hospital de São João e o Centro Materno-Infantil do Norte, no Porto, o Hospital de Santa Maria, Hospital Beatriz Ângelo e Hospital Dona Estefânia, em Lisboa. A decisão de sair do norte foi tomada por questões familiares - queríamos começar a nossa família e eu queria ser mãe num sítio onde tivesse apoio familiar. Na altura, a minha mãe, irmãos, avós e cunhado viviam em Lisboa, pelo que a decisão foi tomada nesse sentido.
Nestes últimos dois anos de formação, o meu foco foi o de aprender e apreender informação específica de áreas que eu escolhi com base nos meus interesses pessoais e no que eu considerava ser importante na formação de um pediatra geral.
Mas, além de tudo isso, eu tinha traçado um objetivo de vida pessoal, muito próprio. E queria-o "para ontem": ser Mãe. Interrompi o meu internato e adiei um ano, para cumprir este meu sonho. Engravidei e tivemos o nosso primeiro filho. Prolonguei a licença de maternidade e fiquei mais uns meses com ele em casa, para poder desfrutar de momentos únicos que não se repetem nunca mais. E não me arrependo. Aos últimos dois anos da minha formação em pediatria, foi acrescentado um ano em que aprendi que ser mãe e ser pediatra tem muito que se lhe diga. Apanhei os meus baldes de água fria, mas fui também capaz de usar este meu conhecimento, não só na gestão de doença, mas também na sua prevenção, na educação e formas de estar, estimular e brincar, que eu considero pilares essenciais no cuidado ao bebé e criança.
Os últimos seis meses deste meu internato, foram feitos já como mãe. Terminei a licença de maternidade e o estágio que me esperava era o de Cuidados Intensivos Pediátricos. Posso dizer-vos que foram os três meses mais difíceis de todo o meu percurso formativo. Ter sido mãe, assistir e ter de tratar crianças e famílias no seu estado mais grave de doença, assistir à morte em idade pediátrica... No último dia deste estágio, pus um pé fora do hospital, e esvai-me em lágrimas. De alívio. E só pensava que não queria chorar sozinha. Liguei ao meu pai, que estava na Madeira, que me ouviu chorar, apenas. E me acalmou o coração. Tinha acabado este suplício. Finalmente. Os três meses que se seguiram, nesta reta final, foram já numa área que gostava e sentia-me à vontade. No entanto, tinha muito "trabalho de casa". No fim do internato, temos relatórios para entregar, trabalhos por terminar, artigos por escrever. Chegava a casa cansada, e tinha de trabalhar. Estava a dormir muito mal há mais de um ano, com despertares de 2 em 2 horas desde que o M. nasceu. Esta privação de sono, a necessidade de trabalho in loco e em casa, com deadlines e exigências, após três meses de intensivos e com um bebé de um ano, fizeram-me perder o chão. Bati no fundo.
Tinha iniciado acompanhamento em psicologia, ainda estava eu em casa de licença. Tive acompanhamento também no regresso ao trabalho, com profissionais especialistas nesse tema, que julgo ter sido a razão pela qual eu consegui, apesar de tudo, ser funcional e não desistir. Mas, nos últimos três meses, senti que não tinha tempo livre para me dedicar a mim e abandonei a psicoterapia, numa altura em que mais precisava. Bati no fundo. Apercebi-me tarde de mais que estava no limite. Pedi ajuda. Este ato que me é tão pouco natural e que me obriga a uma vulnerabilidade a que não estava habituada, mas que tenho vindo a aprender, aceitar e aperfeiçoar desde que fui mãe.
Terminei o internato em dezembro de 2023. Entreguei todos os relatórios, consegui todas as notas em falta, tratei de toda a papelada e burocracia necessárias. De janeiro a março, fiquei em casa a estudar. Para o exame final que ditava o fim deste percurso moroso e intenso. O estudo não foi ao ritmo que tinha conseguido manter, na altura, em 2016, para o exame de acesso à especialidade. Agora, neste exame de fim de especialidade, 8 anos depois, era também mãe. E tinha mais uns anos em cima. As prioridades foram outras. O equilíbrio teve de existir e, com ele, a perfeição posta de lado. Escrevi o meu curriculum e recolhi todo o trabalho que fiz ao longo dos anos de formação em pediatria. Estudei como podia, o que podia, quando podia.
A dois dias do exame, seguimos todos para o norte. Eu, o A., o M. e juntou-se depois a minha mãe. Todos para me dar o colo que precisaria para dois dias intensos de exame. Chegámos ao Porto. Arranjamos um apartamento em Gaia, sob o rio Douro. Estavam dias de sol, a aproveitar a varanda e a ver o M. deliciar-se com as gaivotas, os barcos, as bicicletas, os aviões, os carros,... O exame seria em Penafiel. O A. ia-me pôr de manhã cedo e voltava para o Porto de boleia ao fim do dia. Não aproveitei muito a varanda.
O exame é constituído por três parte. E éramos quatro candidatos a exame. Por sorteio, calhou-me ser a última a realizar cada uma delas.
O primeiro, de discussão curricular.
Neste, sabia de que era constituído o meu currículo. Não havia muito por onde fugir. Defendi-o e aceitei as criticas que sabia que viriam da forma como escolhi fazer o meu percurso. Não fui brilhante, estive aquém dos objetivos de investigação e escrita científica. Sou clínica e assumi-o desde cedo. Estudo ciencia, mas sou clinica. Não a escrevo. A minha prioridade é a minha família e sou demasiado transparente para não deixar que as emoções estivessem presentes nas minhas reflexões curriculares. Isso não é valorizado. Há uma tabela e há números por cumprir. Não foi sequer comentado o facto de ser mãe, ou questionados os desafios que possam ter surgido nesse sentido, tendo eu deixado explícito em currículo a minha interrupção de internato para o ser e que competências tinha adquirido ao sê-lo. Não foram comentadas as formações dadas à comunidade. Não foi comentado o facto de ter escrito um livro a meio do internato médico. Porque não é valorizado. Eu sabia-o. Não interessam competencias humanas, de inovação ou de ações comunitárias. Interessam números e atos científicos básicos, que não vêm acrescentar nada ao conhecimento atual, mas que são exigências curriculares. E eu sou teimosa com as minhas convicções. Fiz os minimos daquilo que considerava aceitável. Dediquei-me mais a adquirir conhecimento, dediquei-me mais às pessoas, do que em perder tempo com assuntos que eu achava irrelevantes. Isto foi uma decisão pessoal, consciente das suas possíveis consequências.
Segunda parte. Recolha, escrita e discussão de história clínica.
Quatro horas a recolher e escrever (à mão) uma história clínica, com uma criança e sua família que estavam internadas no serviço hospitalar onde fiz exame. Calhou-me um caso relativamente simples. Construí a minha história. Mas só a discutiamos no dia seguinte. Cheguei ao Porto e ainda fomos jantar fora, uma francesinha, está claro. Mas, depois de chegar a casa, estive a rever tudo para não falhar nada e a ler teoria para o a última parte. Aquela que mais medo metia. Estava bastante ansiosa para o dia que se seguia. Amanheceu e pudemos, calmamente, tomar um bom pequeno-almoço antes de seguir para Penafiel. O A. levou-me de novo, e terminei então esta segunda parte de exame com a discussão da história, em frente ao júri. Apesar de uma ou outra falha, foi relativamente linear, sem grandes ajustes e senti que tinha corrido bem.
Terceira parte. Exame teórico.
A parte por mim mais temida. Uma hora em que o júri pode perguntar qualquer tema da área da pediatria. Pensei eu que teriam em conta as áreas que tinhamos escolhido como preferenciais no nosso percurso formativo - e foram aquelas a que dediquei mais tempo de estudo. Mas não aconteceu. Além disso, comecei logo mal. A primeira pergunta é geralmente combinada com o orientador de formação, que faz parte dos três membros de júri que nos ouvem. Para poder começar de forma mais tranquila e com confiança. Fui a última candidata da ultima parte. Tinham sido dois dias longos. Eram 18h30 quando entrei para a sala e me sentei frente ao júri, naquele que seria a última provação que tinha de fazer para ser considerada, finalmente, especialista em Pediatria. Eis que, mal a pergunta é feita, sinto o coração a bater a mil à hora, as mãos a tremer em cima da mesa, a voz a me falhar. O que é isto? Fui respondendo à questão, tremelicando. Com pausas para respirar fundo, entre frases. Já fui. Pensei eu. E ainda só tinha começado. Segunda pergunta, simples, respondi. Terceira pergunta. Um tema que não tinha conseguido ver nos dias de estudo. Não o tinha revisto, de todo. Não tive tempo. Já fui. Pensei eu, novamente. Agora é que não há volta a dar. Não sei responder. Passaram à frente, depois de tentar insistir e perceber que estava noutra. Quarta pergunta. Era simples. Mas eu já não estava lá. Já tinha entrado em modo bloqueio. Pânico total. Vejo o olhar da minha orientadora, ansiosa por uma resposta acertada da minha parte. Eu, de cabeça baixa, a bater a caneta na folha em branco à minha frente. O que é que eu posso dizer?
- "Desculpe, Dra C.", é o que me sai.
Sentia-me um fracasso e uma desilusão. Para ela, especialmente. Que foi a minha base e estrutura durante todos estes anos. Que me ensinou tanto sobre humildade, sobre entrega e dedicação. Que me incentivou sempre a ser quem sou, que me apoiou em todas as minhas decisões, que me ensinou tanto. Só lhe conseguia pedir desculpa. O resto desta parte de exame foi nestes moldes. Eu bloqueada, em pânico, a saber que estava aquém do esperado (pelos juris mas, essencialmente, por mim). Enquanto escrevo isto, volto a sentir o coração a bater depressa. Desiludida comigo. Era como me sentia. Quando finalmente acaba, sorriem todos. Não me posso queixar do júri, de todo. Eram todos amorosos. Dizem:
- "Já está, és especialista".
Agradeci, de sorriso tímido e entristecido, por aquela que tinha sido a minha última prestação em exame e de me ter sentido tão miserável. Mal saí da porta fora, chorei desalmadamente. Por vários motivos. Alívio, felicidade, tristeza, desilusão, liberdade?
Acabou, acabou, acabou!
Cheguei ao pé dos meus colegas, dois deles também meus amigos, e abraçámo-nos todos. Muito solidários uns com os outros pela pressão sentida nestes dias, pelo alívio sentido no final dos finais, pela capacidade de trabalho que foi feita ao longo dos anos.
Somos especialistas em Pediatria.
Ufa. Já está.
Não foi fácil. Aceitar que não dei tudo o que podia. A minha prestação em exame esteve longe daquela que eu sei que seria capaz, noutras circunstâncias da minha vida. Mas, à luz daquilo que era naquele momento, tive de acreditar que dei o meu melhor. Mesmo sabendo que o meu melhor não era aquele.
Já tendo passado por exames pesados, por uma pandemia, pelo processo de gravidez, parto, de ser mãe. Esta foi, sem dúvida, das provações mais intensas da minha vida. Até então, pensava eu... E não sei se as pessoas à minha volta o saberão. É difícil transmitir o que significa para nós este marco. Comecei o meu percurso em medicina em 2010. Só agora, em 2024, estou livre para tomar decisões na minha vida pessoal que não tenha por base a exigência de um internato médico, e as fixações a que obriga. Só agora tenho liberdade para pôr em prática uma medicina, uma pediatria, em que realmente acredito. Que tenho liberdade total de escolha na forma como a quero incluir na minha vida. Que me posso dedicar aos meus projetos e às minhas intenções na forma de exercer pediatria.
Já era tardissimo e tínhamos de voltar para Lisboa. O jantar foi MacDonalds', acreditam? Comer e seguir viagem. Chegámos a casa exaustos. No dia seguinte, acordei num estado dormente. Não fiz nada. Não senti nada. Não processei nada. Estive assim três dias.
Até que algo aconteceu que me fez rapidamente despertar de novo para a vida. E me fez esquecer por completo o que tinha acabado de passar com a preparação e realização do exame.
Uma nova provação.
Para todo um fim, um recomeço? Ou uma mera continuação?
O interno escreve - 19/4/2024
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