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Foto do escritorCarolina Germana

O tanto que me ensina a ser



Sento-me no banco do jardim a observar os pássaros a esvoaçar o Tejo, cruzando a luminosa lua cheia que está de frente para mim a refletir nas águas calmas do rio, ainda sob a luz do dia.


Hoje são os 80 anos da avó R.. Diz ser a primeira da sua linhagem a atingir tão tenra idade. E se por um lado lhe é assustador este marco, por outro está orgulhosa das imensas conquistas que realizou nestas 8 décadas da sua vida. E não podia estar mais de acordo. Não estou com ela, que está na ilha, mas vejo a mesma lua que ela vê da sua janela e por isso a sinto por perto enquanto escrevo sobre e para ela.


Dizem que sou parecida à minha avó. E só espero um dia chegar-lhe aos calcanhares. Matriarca da família, a avó deixa em todos nós o seu legado. Teve e tem um papel crucial na educação, crescimento e cuidado dos seus oito netos, por quem nutre um orgulho e carinho que não lhe cabe em si, dividindo e distribuindo amor por todos. Desde cedo que nos reuniu na mesa redonda da sala de jantar da Quinta do Boição, onde aconteciam as grandes discussões políticas, sociais e filosóficas sobre a organização das sociedades e do mundo, sobre a natureza e o comportamento do Homem, sobre a vida e as relações interpessoais. Confesso que de política me ficou pouco, por me terem interessado mais as intermináveis reflexões sobre a natureza, a biologia, a vida e as pessoas. Não sou como ela, capaz de discutir todo e qualquer assunto que tragam para cima da mesa num almoço que se prolonga com debates. - “Se queres ser interessante, torna-te interessado”, diz. Faz parecer fácil esta tarefa e acha que o é. Mas não é para todos. E ela é especial.


Atenta aos pormenores e às pessoas que a rodeiam, a avó R. interessa-se genuinamente pelo que o outro tem a dizer, pelo que é, procurando sempre o bem, mesmo que bem escondido. De sorriso leve e sincero, abre os braços à conversa que tão bem dirige e faz fluir. A arte de saber ouvir é-lhe fácil, dando esse tempo de si sem nunca exigir nada em troca. Sem se fazer ouvir.


Cresci a observar a minha avó e a admirá-la nas suas mais variadas vertentes de si mesma, observando atentamente os seus passos e analisando cuidadosamente as suas convicções. Na sua forma simples de ver o mundo. De analisar a vida ao observar o que está à sua volta, na simplicidade da Terra, dos animais e do universo.


Cresci a observá-la a orientar, a organizar, a delegar, a arranjar soluções. A fazer crescer projetos do zero e a concluí-los. A inovar. Cresci a ver o brilho nos seus olhos de cada vez que idealiza, cria e faz acontecer.


Cresci a observar a sua forma pragmática de lidar com conflitos, derrotas ou entraves. Sem perder tempo com pormenores que não interessam ou que a façam desviar do objetivo final. A ignorar sem esforço os ruídos de fundo de quem não lhe diz nada.


Cresci a vê-la lidar com as emoções como ninguém, distanciando-se de emoções fortes que pudessem por instantes fazê-la deslizar, equilibrando-se na corda bamba com destreza, controlando o choro, o impulso, a raiva, o riso estridente. Raríssimas as vezes que vi algum destes surgir.


Cresci a vê-la acolher e cuidar. Olhar para o outro com atenção, para lá do que se vê. A identificar fragilidades de forma instintiva e a fazer tudo o que está ao seu alcance para ajudar, fazer crescer, fazer superar dificuldades e vencer. A ser a muleta de muitos e o ombro de outros.


Cresci a vê-la defender os seus ideais com unhas e dentes. Com garra se agarra aos seus princípios, defendendo os mais fracos, os mais pobres, os menos capazes, os que não se conseguem fazer ouvir.


Cresci a vê-la amar. Amar como só alguém com um coração despido de vaidade sabe amar. Dando a liberdade para o outro ser no seu todo, quem é. Sem medir, sem cobrar, sem exigir. Aceitar. Amar dando de si tudo o que é. Amar com carinho, com orgulho, com respeito, com admiração. Com ela aprendi o que é o amor.


Cresci a vê-la envelhecer. E a sorte que é tê-la comigo, connosco, a fazê-lo de forma bonita, serena, capaz. Que tanto ensina só por existir nas nossas vidas, com a sabedoria de oitenta anos tão bem vividos, tão bem explorados, tão bem conseguidos.


E o tanto que me ensina. A observar, a conversar, a orientar, a organizar, a delegar, a criar, a ensinar, a acolher, a cuidar, a ouvir, a amar, a respeitar.


O tanto que me ensina a ser, sendo.


Sem medo, avó. Os seus oitenta são inspiração. São exemplo. São ternura. Continuarei a aprender, consigo, todos os dias.

 

CroniCalinas 17.01.2022



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