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Foto do escritorCarolina Germana

O sorriso do J.


Hoje quando ia a sair do trabalho, já quase duas horas fora do meu horário, passei no quarto do J., para comunicar à mãe que íamos passar a usar o ventilador apenas durante o sono.


O J. faz amanhã 4 meses. Está internado desde sempre na sua história de vida. Nunca viveu noutro sítio que não o hospital.


O J. nasceu prematuro. O J. foi infetado pelo vírus SARS-CoV-2 à nascença, provavelmente até no momento do parto. O J. teve um azar muito grande ao desenvolver uma doença grave nesse contexto, pois à luz do conhecimento existente à data desse acontecimento, nada fazia prever a evolução drástica que teve este bebé, que já viveu, sobreviveu e ultrapassou mil e uma barreiras da medicina e da ciência.


Já esteve com tubos a servir de via aérea para que o ar pudesse entrar; já esteve em ECMO - uma bomba que faz circular o sangue fora do corpo através dum pulmão artificial quando o coração e os pulmões não funcionam devidamente - tendo estado sedado durante esses 50 dias, sem qualquer reação ou interação com a vida cá de fora; já se curou de mais de 7 pneumonias por outros bichos maldosos que se aproveitam da fragilidade pulmonar com que ficou e pelos tratamentos que reduzem a sua capacidade de resposta a agressões externas; está sob a ação de um ventilador mecânico há 2 meses, que o ajuda a criar a pressão e volumes necessários no seu pulmão para que o oxigénio consiga circular pelo seu corpo (lentamente reduzindo os períodos em que precisa de estar conectado a ele); alimenta-se por uma sonda que leva a comida do nariz direto ao estômago, sem desenvolver o reflexo de sucção, de saborear ou de engolir há meses (só há pouco começando já a poder comer pela boca, a sentir o sabor do leite da mãe, que não desistiu de estimular e tirá-lo para oferecer ao seu bebé o melhor que podia); já melhorou e complicou e já se andou para a frente e para trás, num vai e vem de esperança em melhoria e baldes de água fria; tem sido difícil o seu aumento de peso e desenvolvimento de massa muscular pela imobilidade e fraca estimulação, sendo alvo de uma série de terapias e de uma equipa multidisciplinar que o quer ver autónomo e livre o mais rápido que for possível, com a paciência necessário para que lá se chegue sem mazelas. Em suma, tem sido um verdadeiro resistente. Ele, a MÃE (não consigo deixar de enfatizar aqui o papel desta mãe), o pai e o irmão.


Mas o que se sucede hoje, ao passar pelo quarto do J., mesmo antes de sair do hospital, a queixar-me internamente das horas extras que não me são pagas e do trânsito que vou apanhar para chegar ao conforto do meu sofá, oiço a voz alegre da mãe do J. a falar para ele. Entro sorrateiramente, para ver que possível brincadeira estariam eles os dois a ter naquelas quatro paredes que já lhes conhecem tanta angústia. Quando me vê, rapidamente vem ter comigo de olhos a brilhar com lágrima de canto e de sorriso de orelha a orelha (via-o rasgar-se para fora da máscara), mostrar-me o vídeo que acabara de fazer no seu telemóvel.


O J. sorriu pela primeira vez hoje.


Até hoje, esta mãe, residente há 4 meses também ela no hospital, com ausências de uma ou outra noite em que vai a casa apenas a partir deste último mês, ter com o seu filho de 3 anos que lá ficou, não tinha visto o J. sorrir.


Livre do ventilador, a mãe captou a sua primeira interação e reação de felicidade. E partilhou-o comigo. A lágrima também me chegou ao canto do olho, enquanto ficava eu também feliz com aquele marco. "Agora o próximo passo é palrar", diz ela. E ficámos ali as duas um tempo a fazer rewind no vídeo, enquanto íamos espreitando por mais sorrisos do J..


Hoje é dia mundial da prematuridade. Hoje vi sorrir o J., junto da sua mãe pela primeira vez em 4 meses. E são estas famílias, estas vitórias, estas histórias, estes bebés lutadores, que jamais me farão desistir deste sonho meu que é fazer parte desta construção e contribuir para estas pequenas conquistas. E é um sonho que se tem tornado cada vez mais real, a cada mãe, pai, avós, bebés e crianças que me ligo, que me dão de si mais do que eu posso alguma vez oferecer.


E vamos continuar a sorrir juntos J.. Na esperança de que (muito) em breve possas ir para o teu ninho de amor que te espera ansiosamente.


A todos os bebés e famílias que passam por estas e outras inúmeras dificuldades e desafios, com percursos mais ou menos atribulados, com finais mais ou menos felizes, que possam encontrar paz, esperança, força e muito amor nas vossas vidas.

 

O interno escreve 17/11/2021

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