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Foto do escritorCarolina Germana

O regresso a casa



É noite de lua cheia. E dia de regresso a casa.


Saída de madrugada. Chamada do Uber, máscaras postas. A divisão de acrílico separa-nos do condutor. Os corações batem depressa. É desta?


De um lado do carro, a lua ilumina o aeroporto Francisco Sá Carneiro. Do outro, o amanhecer clareia a escuridão. Chegámos. Dentro do aeroporto, os ainda escassos passageiros circulam todos de máscara. No momento do check-in, tiramo-la durante segundos para dar a conhecer a face estampada nos nossos cartões de identificação, que tantas vezes é surpreendente por baixo dos olhos que estão à vista.


O céu já está claro. É manhã. A lua ainda se vê cheia, mas prestes a desvanecer, por cima do avião no qual vamos embarcar.


Tenho medo de andar de avião. Ou tinha. Porque a sensação de ver aquele pássaro motorizado, foi apenas de alívio. Como se me tivessem libertado de uma prisão onde estive enclausurada durante anos, tal foi a intensidade dos últimos meses. Para quem é ilhéu, difícil foi não ter o nosso meio de transporte rápida e facilmente disponível para ir a casa. Difícil foi estar aprisionado no retângulo e não poder voar para a ilha.


Arrepiei-me só com o barulho do motor.


É desta, sim. Vamos, finalmente, a casa.


Estou no banco do avião, à espera que levante. Estamos só os dois e não temos ninguém sentado ao nosso lado. As nossas máscaras em bico de pato são o nosso escudo e não a tiramos por um segundo. Sinto-me a descomprimir e a desligar, aos poucos, do que foi. A deixar-me entrar nesta semana, vazia de sentidos, para viver intensamente o que vier. O A. já dorme ao meu lado, para que o tempo passe depressa e possa voltar a abraçar os seus.


Respiro fundo. É agora. Vamos descolar.


O atravessar das nuvens acordou-me. Aquela turbulência que me assustava em tempos, foi o reconhecer da chegada. Está quase.


Vêem-se as montanhas, a encosta e o mar. Vêem-se as casas espalhadas e o aeroporto a aproximar. Cai uma lágrima de um olho. Escorre uma do outro. Sem pensar, só a sentir. O aproximar. Mais. As rodas tocam a pista. Encho-me delas. E agora? Molhei a máscara. Não importa. É real.


Chegámos.


Não me tinha apercebido da vontade que tinha em estar aqui e do quão apertada estava a alma por não poder estar. Limpam-se as lágrimas e fica o sorriso escondido. Foi recente a abertura das portas e no aeroporto não só nos fazem sentir seguros, mas bem-vindos.


Continuo de máscara. Testámos negativo. E vale o que vale. Quero poder dar um abraço ao meu pai e segurar a mão da minha avó. Mas mantém-se a dúvida permanente do arriscar trazer para cá o que lá ficou. Paira a desconfiança dos que nos vêm chegar e a incerteza de tocar ou afastar.


Tempos estranhos estes em que até de nós temos receio.


No caminho até casa, deparo-me com as ruas desimpedidas, os quartos de hotel de luzes apagadas, o porto sem navios de cruzeiro e a maioria dos restaurantes fechados. Rapidamente a alegria de chegar, é abafada por este silêncio triste do vazio.


Tempos estranhos estes que nos tiraram vida.


Cheguei e vou já sair, para mergulhar no mar quente que nos rodeia e deixar-me embalar pelas ondas do mar enquanto faço o morto a olhar o céu, na esperança que melhores dias virão.

 

Diário de uma pandemia 05.07.2020








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