Passada esta primeira semana de reentrada nas escolas, após 6 meses de pandemia, estou angustiada – está tudo louco.
Como se já não fosse suficiente as nossas crianças e adolescentes terem ficado sem escola durante meio ano, com todas as implicações que isso teve a nível de aprendizagem, relações sociais e de diversão, ainda conseguiram fazer da tarefa de voltar à escola, mais um desafio que diria ser quase impossível.
A maioria deles ansiava pelo regresso à escola, por voltar a encontrar-se com os amiguinhos e por ter finalmente alguma liberdade de casa. Por voltar a ver professores, por voltar a estar num ambiente que conheciam ou por entrar numa escola nova e o entusiasmo da novidade.
Mas não. Caminham em direção ao completo desconhecido, à completa desordem e ao completo desconhecimento e ambiente desproporcional à realidade.
Eu não sou mãe, é certo. Mas a angústia que sinto com os relatos de todas as mães, crianças e adolescentes que vi ao longo desta semana na minha vida pessoal e, em especial, na minha atividade clínica, foi suficiente para sentir em mim um aperto no peito e uma tristeza enorme por eles. Todas as mães, sem exceção, estão preocupadas com o bem-estar dos seus filhos, pela sua sanidade mental, pelo brincar, pela aprendizagem e pelo crescimento a todos os níveis. Todas, sem exceção, estão de lágrima ao canto do olho ao me contarem sobre as reuniões de introdução nas escolas que viraram prisão.
As crianças não merecem. Os pais não merecem. Os professores estão perdidos e com receio. Nós não sabemos como ajudar. E o país não vai aguentar.
Lembro-me de há 6 meses, sentir que estava sem chão. Que estava a entrar num mundo novo, com toda a reestruturação que os Hospitais levaram, todas as mudanças, incertezas, dúvidas e angústias, próprias de uma pandemia desconhecida que iria acabar com o mundo tal como o conhecíamos. Lembro-me de ver amigos e família e irem para casa e a lá ficarem, enquanto eu ia trabalhar para o completo desconhecido. Lembro-me de ter sido uma fase confusa, de um grande mix de emoções e de uma grande capacidade de adaptação, de paciência, de lágrimas, de alguma solidão e de dores no peito. E talvez seja tudo isto que os profissionais de educação sentem neste momento, ao voltar à atividade assistencial e ao trabalho presencial.
Mas hoje, sabe-se mais. Pouco, mas mais. E por isso não posso aceitar que tudo aconteça como se fosse novo, como se fosse o início da pandemia e como se ninguém tivesse já algum conhecimento de base nem tempo de preparação para este novo ano letivo.
Percebo que as notícias, as redes sociais e os media fomentem o medo e que isso leve pais, educadores e famílias a terem receio por si e pelos seus. Que este seja um vírus complexo, com implicações futuras que ainda desconhecemos, que se tenha de tomar medidas e que se tenha de cumprir regras por uma questão de saúde pública e nos protegermos uns aos outros. Mas que isso não seja motivo para nos isolarmos, panicarmos e não interagirmos uns com os outros e em especial, não dedicarmos a nossa atenção a quem mais precisa, nomeadamente a criança, nem que se modifique toda uma estrutura já montada de educação e que isso seja motivo para deitar tudo a perder.
Percebo que haja poucas orientações claras para os professores e para o funcionamento das escolas em geral, mas somos todos seres pensantes e vamos ter de combater contra aquilo que achamos demais, idealmente em equipas multidisciplinares que possam esclarecer dúvidas acerca dos temas que desconhecem. Vão ter de ser feitas reuniões atrás de reuniões, readaptações atrás de readaptações, à medida que os dias passam, para que tudo se torne fazível com o tempo.
O que eu não consigo perceber, no entanto, é a necessidade da maioria das medidas:
Escolas sem intervalos ou intervalos mais curtos? Intervalos passados dentro das salas de aula?
Ausência de bares nas escolas?
Uso obrigatório de máscara para crianças abaixo dos 12 anos?
Impossibilidade de banho após aulas de educação física? Ausência de aulas de educação física? Ausência de desportos de contacto?
Impossibilidade de socializar com os amigos? Impossibilidade de brincar no exterior?
Sanções a quem desrespeita regras?
Pais que não podem acompanhar os seus filhotes pequenos e assustados até à escola?
Impossibilidade de levar amuletos?
Que vida é esta? E que implicações terão estas medidas no dia-a-dia destas crianças?
Estamos a ignorar as gerações e gerações que combateram a injustiça e lutaram pela uniformização de modelos de ensino para que todos tivessem as mesmas oportunidades e acesso à educação. Gerações e gerações a formar uma estrutura de ensino exímia, a apostar na saúde, no desporto e na aprendizagem. Gerações e gerações a apostar na empatia, na partilha, no afeto, na expressão e na criatividade. Gerações e gerações que estudaram o neuro desenvolvimento do bebé, da criança e do adolescente, perceber as suas emoções e caraterísticas bio-psico-sociais e como melhor fazê-los crescer e torná-los adultos saudáveis e capazes.
Importa saber mais, ouvir mais e pensar mais. Usar a informação de hoje. Atualizar com a informação de amanhã. E agir agora, todos os dias.
Importa perceber que este é um vírus que provoca uma doença ainda desconhecida e com pouco tempo de evolução e que isso significa que ainda sabemos pouco acerca de tudo o que lhe está relacionado e que o conhecimento de hoje pode alterar-se no futuro. Mas o que sabemos hoje descansa-nos em relação à população pediátrica:
MENOS CASOS POSITIVOS
MENOS CARGA VÍRICA
MENOS TRANSMISSABILIDADE
MENOR GRAVIDADE DA DOENÇA
É certo que com a decisão da reabertura das escolas, os contactos serão naturalmente muito maiores e as cadeias de transmissão de todos os contactos serão muito mais difíceis de seguir e gerir. É certo que o número de testes vai aumentar, que o número de positivos na idade pediátrica eventualmente aumente também, o que não significará necessariamente o aumento de casos graves ou maior propagação da doença entre familiares, educadores e colegas.
As febres e as infeções virais continuarão por todo o inverno e as crianças abaixo dos 3 anos serão sempre as mais afetadas. Todas estas febres não poderão ser testadas para covid-19, pelo risco de entupir urgências com patologias não urgentes, ocupar lugar àqueles que de facto precisam de cuidados médicos imediatos, rapidamente esgotar a capacidade de realização de testes e não poderemos passar declarações de SARS-Cov2 negativo para todas as crianças com um pico febril isolado. É impraticável e perigoso.
Os cuidados sim, a ter são: logo que iniciem sintomas de doença – ranho, tosse, febre – seja COVID ou não - evitem ir para as escolas, evitem os contactos com os avós e familiares com patologias de base, cumprindo assim o isolamento e distanciamento de pessoas de risco, regressando à sua vida normal quando deixarem de ter sintomas. Atenção que os avós de crianças pequenas, não são os mais idosos de 80s, mas sim de 60s, pelo que não são a população de maior risco de doença grave ou morte.
Tudo isto me preocupa.
Preocupa-me o atraso e o retrocesso que vai acontecer nas crianças deste país. E talvez do mundo. E o que isso significará em termos de evolução humana no seu todo.
Preocupa-me a criança que tem medo nos olhos, que não vai brincar, que se sente culpada por estar doente, que se sente prisioneira dentro da sala de aula.
Preocupa-me a desmotivação para aprender. Preocupam-me que os alunos de mérito deixem de o ser, os que atrasaram neste período de confinamento não recuperarem, os com maiores dificuldades, que mais para trás possam ficar e os com necessidades especiais que estão perdidos após este meio ano sem acompanhamento.
Preocupam-me os meninos obesos que mais obesos ficaram e as crianças que obesas se tornaram. Preocupa-me a falta de auto-estima e de confiança resultante e os problemas de saúde associados no imediato e a médio-longo prazo. Preocupa-me o sedentarismo, o maior uso de ecrãs, a falta de desporto e os armários cheios de bolachas e cereais de chocolate e os frigoríficos de refrigerantes, enchidos e gelados.
Preocupa-me a ansiedade da criança de 5 anos, as perturbações de sono e os xixis na cama.
Preocupam-me os ataques de pânico dos adolescentes, a maior agressividade, impulsividade e maior exposição a riscos e consumos.
Preocupa-me que eu tenha falado vezes sem conta, que tudo iria melhorar com o regresso à escola e às rotinas, e que isto não seja verdade.
Queria e quero mesmo acreditar que com o tempo tudo mude para que possamos voltar a dar segurança, tranquilidade e um ambiente de diversão, socialização, aprendizagem e aquisição de competências a todas as nossas crianças. E que não nos esqueçamos que elas são o futuro e que têm de ser especialmente protegidas e preparadas, não do e para o vírus, mas do e para o mundo.
A doença vai e vem, mas a criança fica. Hoje e sempre. E precisa de todos nós.
Não deitemos tudo a perder.
Diário de uma pandemia 17.09.2020
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