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Foto do escritorCarolina Germana

Menina, estarás sempre à janela. Carta à minha avó.


Olá avó.


Acabei de chegar também ao céu. Tenho as nuvens abaixo de mim. Está muita luz aqui em cima. Duas horas depois de me ter sido comunicada a sua partida, é aqui que estou. Consigo.


Estou a vê-la... com a sua saia abaixo do joelho, de camisa e sapato escuro de cano baixo. Estou a vê-la com o seu colar pesado de contas, brinco azul à orelha e lenço colorido enrolado ao pescoço. Estou a vê-la com o seu cabelo fino, mas sempre bem arranjado. Vaidosa, como sempre. Leva a sua mala ao ombro. Não faltam o pente, o espelho, o baton, o porta-moedas, as lãs e as agulhas de crochet. Está cheirosa.


Estou a vê-la chegar. Ao céu. A chegar junto a Deus, onde só a sua fé a podia levar. Está de sorriso, tranquilo e sereno, estampado no rosto. Avança num tapete de nuvens branco, os anjos cantam para si e a avó a eles se junta na melodia. Chega até Ele. Entrelaçam as mãos como as entrelaçou comigo tantas vezes, suaves como seda. São-lhe dadas as boas vindas.


Ainda olha para trás. Mas chegou a hora. Vá, avó, que nós ficaremos bem.


Sorri de novo.


Levam-na ao (re)encontro da sua mãe e pai. Do seu bisneto, que segura ao colo. Abraçam-se com força. Levam-na para um espaço que é uma mistura daquilo que é a casa da sua mãe e a sua. Passeiam no jardim, rodeado de flores. E sentam-se para o lanche no seu jardim de inverno com vista mar.


Está o bolo de ananás no forno , a gelatina com iogurte no frigorífico e cheira a torradas de papo seco e a chá de erva doce. Sentam-se depois nos sofás a fazer crochet e lá ficam a pôr toda a conversa em dia, por tempo indeterminado. Têm todo o tempo do mundo, avó.


Fale-lhes de nós. Dos seus quatro filhos, dez netos e da sua bisneta. Que rica descendência que deixa para dar continuidade a si e aos seus. Fale-lhes das suas irmãs, que foram as suas companheiras de uma vida e estiveram consigo até ao último dia. Fale-lhes de nós e das nossas memórias consigo e de todos os ensinamentos que nos deixou.


Foram 88 anos ricos de vida, de uma força da natureza, uma inspiração. Foram muitos anos cheios de si em cada um de nós.


Não estive aí para lhe segredar umas últimas palavras ao ouvido ou apertar-lhe a mão. Mas não ficou nada por dizer, avó. Falávamos muito. Dei-lhe as mãos tantas vezes e abracei-a mais ainda.


Não a imagino estrela. Imagino-a tal como é na sua casa no céu. Cheia de genica, de bondade e simplicidade. E é aqui que me despeço de si. É aqui que a abraço uma última vez, na esquina da sua porta de entrada, com as plantas do corredor de fundo. Vou-me depois afastando lentamente, de olhos postos em si. Com o sorriso mais bonito e ternurento que conheço, acena para mim. Como sempre, a jeito de despedida.


Aceno de volta. Mandamos beijinho.


Ainda corre até à janela para me ver ir. Acenamos mais uma vez, já ao longe, sorrindo.


Adeus avó.


E ali fica a menina, que estará sempre à janela, a olhar por nós. Para sempre comigo. Para sempre connosco.


18.2.2021

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