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Foto do escritorCarolina Germana

Hoje sou toda minha.



M: - O que é que vais fazer hoje?

C: - Nada.

M: - Como é que isso se faz?


Durante a tarde de hoje, a minha irmã fez-me esta pergunta. Respondi-lhe que não ia fazer nada, ao que ela me responde, indignada: - Como assim? E como é que isso se faz?


Não lhe soube explicar bem como, até porque não sou muito boa a fazê-lo. Fazer nada, digo.


A verdade é que a ocupação é uma constante na minha vida e na de tantos nós. São raras as vezes em que me permito estar desocupada, sem culpa. Quando me apercebo que nada faço, entro num ciclo de culpabilização que me atormenta por estar a ocupar mal o meu precioso tempo. Tirar a culpa da desocupação é uma prática que tem sido por mim treinada, inicialmente forçada e cada vez mais aceite com naturalidade quando lhe dou espaço para entrar na roda-viva da minha vida.


Não fazer nada não significa perder horas a fazer scroll nas redes sociais. Nem significa deitar-me na cama ou estender-me no sofá de olhos abertos ou fechados a existir. Não fazer nada, para mim, significa simplesmente não ter planos definidos, não ter horários, não ter agenda, não ter pressa. Não ter ninguém com quem estar, falar, discutir ou agradar. Significa estar comigo. Só comigo.


Hoje foi um desses dias. Em que encontrei o espaço e o tempo para não fazer nada, sem culpa – e a força de vontade para recusar convites e de não planear fazer algo.


Estou sentada no alpendre de uma das casas que estão por alugar da quinta dos avós, neste momento sem hóspedes, num dia de saída de um turno de 24h de trabalho no serviço de urgência do Hospital de Santa Maria. Estamos em dezembro e está frio. Choveu ao longo da tarde e a relva molhada emana um cheiro a terra, o vento faz esvoaçar as poucas folhas que restam nas árvores e ouvem-se os pássaros a chilrear. Começa a escurecer. Não há qualquer sinal de um pôr do sol, de tão cinzento que está o céu. Só sei que desaparecerá e que a lua brilhará escondida algures no universo. Estou vestida com um casaco quente e de cachecol enrolado ao pescoço, a escrever com as mãos geladas neste ambiente que hoje escolhi para sentar-me comigo.


Estar só e sentirmo-nos bem a estarmos sozinhos é difícil de conseguir na era em que vivemos, com a quantidade de estímulos, propostas, desafios, obrigações e convívios a que somos expostos diariamente. A descoberta sobre aquilo que gostamos de fazer quando estamos a sós e livres de agenda, é um percurso que me tem sido interessante de decifrar. Julgo ter sido esse o caminho que percorri durante o início da pandemia e que tenho tentado voltar a ele sempre que me sinto a desviar em direção a algum beco sem saída.


Aprender a observar-me e a explorar o que sinto, a dar-me tempo e espaço para poder conhecer-me, tem sido uma vontade minha que me ajuda a atingir a estabilidade sempre que me desequilibro na fina corda bamba da vida. Não quis, no entanto, fazer desta pausa obrigação e recusei que se tornasse uma tarefa acrescida na agenda para me trazer mais ansiedade sempre que não a pudesse cumprir.


Mas fiquei atenta. Atenta a esta necessidade de o fazer. Fazer nada, digo. Por vezes procuro-o mais cedo, outras vezes mais tarde e às vezes tarde de mais. Mas sei que consigo lá chegar quando preciso, posso e sinto que tenha de voltar a mim.


Tem sido pouco o tempo que me tenho permitido fazê-lo ultimamente. Fazer nada, digo. A culpa da desocupação tem-me ocupado. Mas hoje dei-me a esse luxo. E raramente me arrependo.


Hoje decidi fazer nada. Nada, fazendo planos e redefinindo agenda. Sonhando e pesquisando formas de concretizar sonhos. Pensando e escrevendo. Olhando em meu redor, sentindo o ar puro do campo, atentando aos sons da natureza. Fechando os olhos e deixando-me adormecer no sofá. Vendo um filme a comer pipocas enrolada na manta, de chá quente na mão. Atualizando o meu diário. Fazendo uma caminhada. Decidi fazer nada, fazendo de tudo um pouco daquilo que me faz voltar a mim e sentir em paz comigo. Para me libertar daquilo que me ocupa e me faz distanciar de mim e dos outros. Para poder estar de novo disponível.


Como fazer nada?


Reconhecer a sua necessidade. Saber como nos libertar e como nos preencher. Aproveitar um espaço morto na agenda, quando surgir. Recusar propostas de convívios e outros planos. Evitar procurar insistentemente por ocupação. Esvaziarmo-nos da culpa por não estarmos a realizar tarefas pendentes (que existem e surgirão sempre). Dizer que não, sem medo de represálias, sem medo de perder uma oportunidade, de perder um acontecimento.


Deixar de ter medo de refletir.

Deixar de ter medo de chorar.

Deixar de ter medo de sorrir.

Deixar de ter medo de sentir.

Deixar de ter medo de falhar.

Deixar de ter medo de parar.


Deixar de ter medo de estar só.


Já se faz tarde e está escuro e frio, saindo-me uma névoa ao respirar pela boca. Está na hora de regressar. Vou agora procurar companhia na mesa com os avós, com o lanchinho e as histórias que me esperam, sem olhar para o relógio com pressa de desaparecer. Hoje não. Hoje não faço nada.


Hoje sou toda minha.

 

CroniCalinas 10.12.2021

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