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Foto do escritorCarolina Germana

Contigo. Por ti. Me reparti.


Estou deitada no sofá com o meu filho deitado sobre mim a dormir profundamente. Fico a olhar para ele, sereno, apreciando a perfeição de cada detalhe do seu rosto pequenino enquanto o vou enchendo de beijos suaves para não o acordar, apenas para garantir que isto é real. Que é palpável. Que me reparti de facto em dois e trouxe ao mundo mais um.


Que é o meu filho que tenho a dormir sobre mim.


Passaram-se duas semanas desde o dia em que demos entrada no hospital, antevendo a tua vinda a este mundo. O que não esperávamos é que fosse um dia tão longo, com as 16 horas de espera que pareceram dias a passar.


Vieram os comprimidos para indução do parto duma gravidez que já se arrastava há mais de 40 semanas. Com o pai a acompanhar e entre música, jogos de cartas, bola de pilates e vídeos para rir, tentávamos que os minutos fossem mais rápidos e as horas menos dolorosas. Sem efeito, romperam-me as bolsas de água na esperança de acelerar o processo. Mas nada. As contrações, cada vez mais intensas e menos espaçadas, faziam-me desesperar. Peço epidural e só quando a levo é que percebo o nível de dor que tinha, quando finalmente deixo de a sentir. Com as horas a passar e a analgesia a perder efeito com o aumento da intensidade da dor, peço segunda epidural. Pedi ainda uma terceira e quarta vez. E nisto tudo, nada de progressão de trabalho de parto. Decidem que o mais seguro é vires ao mundo por cesariana, embora não fosse esse o meu desejo. Mas já desesperados e cansados, só te queriamos ver cá fora, se assim fosse o melhor para ti. Não me deram mais analgésico porque depois levava anestesia. Mas houve um atraso na nossa ida para o bloco por ter surgido outra situação de emergência e não descemos às 22h como previsto. As contrações, cada vez mais intensas, de minuto a minuto, e sem poder pedir mais medicação para me tirar a dor, usei todo o tipo de respiração para alívio, sem grande resultado. Sabia que dentro de pouco tempo iria ser submetida a cirurgia, mas não quando exatamente. Não me lembro bem desse período de tempo desde a última epidural ao bloco. O nosso corpo tem formas inteligentes de apagar da memória momentos de maior sofrimento.


Descemos já só perto da meia noite. O pai foi-se equipar para poder assistir a tudo enquanto eu fui sendo preparada pela equipa de profissionais no bloco operatório. Já com o pai ao meu lado, começou a cirurgia. Estavas quase a vir a este mundo, filho. E nós, ansiosos por te ver.


Mas não podias vir sem dar luta. Encravado na grade costal, jamais conseguiria ter sido um parto por outra via que não aquela, murmuravam os profissionais presentes. Com as mãos das duas obstetras e da anestesista contra as minhas costelas, senti a pressão toda que fizeram contra mim para te arrancar dali, com o meu corpo a ser empurrado para todos os lados como se me estivessem a partir aos bocados, de tal forma que me senti nauseada e a desejar que tudo acabasse rápido.


- "Está todo enrolado no cordão"

- "Vamos ter de usar ventosa"


Ecoam as frases nos meus ouvidos - não está a ser fácil. O pai, de sorriso na cara, tranquilizava-me e tentava distrair-me a todo o custo. Seguro e atento a mim, brincava ao jogo dos polegares e deixava-me ganhar.


Quando finalmente ouvimos:


- "Chora, bebé".


Os trinta segundos mais longos de sempre foram os que existiram entre essa frase e o choro do nosso filho. O mundo parou. Fechámos os olhos a aguardar o momento, de coração nas mãos.


E ouvimos chorar.


Chorou ele e chorámos nós. As lágrimas escorriam-me de felicidade e de alívio. Finalmente. Acabou. E está tudo bem.


O pai foi ver-te seres preparado e vestido com a roupa que escolhemos para o teu primeiro dia de vida, por um enfermeiro com touca de bonecos do Batman, qual super herói, enquanto eu aguardava pacientemente por ti.


Rapidamente foste colocado em cima do meu peito para que te visse e te sentisse, agora fora do meu ventre. Batendo fora de mim.


E então me reparti.


Olhaste para mim de olho bem aberto. Olhos grandes, expressivos. Olhei para ti e senti que te conhecia há já muito tempo. Não foste novidade absoluta, mas o sonho tornado realidade. Afinal, foram 9 meses completos de ti dentro de mim. Já estava na hora, filho. De te ver. Ter-te a olhar para mim nos meus braços. Sentir-te, abraçar-te. Conhecer-te os traços.


O teu pai segurou-te, experienciando pela primeira vez a sensação de te ter com ele. De seres dele também. E que alegria me deu vê-lo olhar para ti, enamorado, no segundo em que te pegou. O amor da minha vida a segurar o fruto do nosso amor. O nosso maior amor. E ficámos ali, enquanto me fechavam, com o pai ao meu lado, de mãos dadas, completamente alheios de tudo o que se tinha passado até então, alheios à dor previamente sentida, alheios ao encerrar daquela que fora uma cirurgia complicada, apenas a adorar o nosso filho, embevecidos com a capacidade de trazer um produto de nós dois a este mundo. Estes 3,630kg e 52cm de gente que estava dentro de mim. Agora cá fora.


O tempo no recobro para mim é uma névoa. O pai deverá lembra-se melhor do que eu. Sei que te abri a roupinha e juntei-te ao meu corpo, para que ambos sentissemos o calor um do outro. Que tiveste a beber do leite que o meu corpo tão incrivelmente preparou para ti, para o momento da tua chegada e que conseguimos os dois que fosse suficiente. Sei que senti ali, naquelas tuas primeira horas, que éramos uma familia e que íamos os três começar a maior aventura das nossas vidas.


Contigo. Por ti. Me reparti.


 

CroniCalinas 7.11.2022

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