Não percebo de política. Não pertenço à ARS que motivou a atual polémica. Não conheço os colegas, o contexto, o lar ou as condições de trabalho que lhes foram dadas. Acredito que o nosso primeiro ministro, como todos nós, esteja farto e cansado dos últimos meses, de debates e tomadas de decisões mais ou menos difíceis. Acredito que haja colegas menos profissionais e dedicados que outros, como em todo o lado. Mas "gajos cobardes" é um infeliz comentário generalista que não deveria ter sido proferido no calor do momento pelo nosso primeiro ministro, dirigido a uma classe profissional que não sabe para onde se virar para conseguir fazer melhor no momento histórico que atravessamos.
Hoje, mais do que nunca, a colaboração duma nação como um todo é necessária, e o trabalho de equipa, coesão e confiança nos sistemas de saúde é mais importante.
É por isso feio, senhor primeiro ministro. Feio e triste que seja essa a sua visão e mensagem que passa para o povo que o ouve, que o profissional de saúde é o cobarde que não quer trabalhar a tentar segurar as paredes do SNS no meio do caos, desde março e desde sempre.
E devo dizer que não sou internista, intensivista, médica de família ou de saúde pública (sim, esses profissionais não hospitalares que têm dado ao litro sem muitas vezes serem mencionados). Sou Pediatra no meu terceiro ano de formação e nunca vi tão poucos doentes desde o início da minha atividade, para lhe ser franca. Não tratei de casos graves com covid-19, não estive a fazer rastreios, não estive a fazer voluntariados nem estive em contacto com populações de risco, porque a pediatria por obra de algum santo, manteve-se longe dos grandes números e da gravidade.
Ainda assim, garanto-lhe que vi e vivi mais daquilo que claramente pouco sabe.
Vi os olhares confusos e desorientados de todos sem exceção, no local de trabalho. Vi a incerteza e a dúvida em como tratar alguém e pior, vi medo de tratar e de cuidar. Vi lágrimas caírem como rio e corações baterem depressa à beira de colapso de profissionais com anos de experiência e de entrega, exaustos. Vi preocupação nos olhos de quem vestia um EPI e tentava não errar nos mil passos necessários, para não levar para casa o bicho e contagiar o cônjuge, filhos, pai, mãe ou avós. Vi crises de ansiedade de colegas a quem entrego a minha vida nas mãos. Vi reestruturar serviços e vi mudar pessoas. Vi o empenho, o esforço e a entrega de todos, mais ou menos de acordo, em fazer cumprir o nosso papel - o de não se acobardar e estar, aqui, sempre, independentemente do risco, da dúvida e do medo.
Estive eu envolvida na reestruturação de equipas, na montagem de escalas e no debate interminável de propostas e contra propostas para melhorar a nossa oferta enquanto profissionais, o atendimento seguro dos pais e crianças, para reduzir os nossos próprios riscos e os dos nossos doentes. Senti eu tristeza por não poder estar com os meus e de não os poder tranquilizar por pouco saber. Senti o risco na exposição diária desde o dia um mundial, ao dia um nacional e da região onde trabalho. Ao aumento progressivo e à sua redução também, que traz com ele ainda um risco acrescido do qual ainda desconhecemos o desfecho. Abracei os meus colegas, sem dever.
Li normas atrás de normas. Revi e reli procedimentos atrás de procedimentos. Atualizei conhecimentos diariamente. Tentei não esquecer e não abafar todos os outros conhecimentos que tinha de manter para um bom atendimento a todas as patologias não covid. Tentei não me deixar influenciar pelo medo para poder trabalhar. Fiz um esforço para nunca deixar transparecer o que me ia na alma, de forma a transmitir confiança, tranquilidade e força aos pais das minhas crianças que por cá apareceram em tempos de pandemia, a serem atendidos por astronautas sem sorriso, de coração nas mãos com um filho com febre.
Sem sequer ter tempo para pensar nas consequências a curto/médio ou longo prazo, me entreguei à profissão que escolhi, com a missão que eu quis para a minha estadia neste mundo.
Não espero que consiga compreender o que vivemos, senhor primeiro ministro. Não sou ingénua a esse ponto. E sou, muitas vezes, ingénua ao ponto de não querer saber do que me possa ferir. Mas nisto não. Porque na minha profissão, sei bem aquilo que pretendo oferecer, ser e conquistar. Mas não o faço a custo zero nem o faço independentemente das condições que me possam oferecer. Porque o amor à camisola, a dedicação ao outro, o querer o bem, não é superior ao amor próprio, à dignidade e à entrega necessária para o fazer, porque o ponto principal e crucial num suporte de vida é a segurança do socorrista. A todos os níveis. E a valorização do que aqui fizemos e fazemos todos os dias, é a nossa segurança e é mais importante hoje que nunca.
O doente não tem culpa. O povo não tem culpa. A criança não tem culpa. Ou terá? Os vilões seremos sempre nós, que queremos os EPI, as macas, o espaço, o teto sem pingar, a dignidade do doente, as condições de visitas, os recursos humanos para escalas mais humanas, menos horas seguidas, descansos compensatórios, mais horas de sono, menos erros médicos.
Gostaria de ser reconhecida, valorizada e bem tratada. Não por ser eu, por achar-me mais que alguém ou por achar que mereço tratamento diferente dos outros. Mas por achar que o meu trabalho faz de facto a diferença. E por saber que eu e todos os que mantiveram de pé o SNS em tempos históricos, difíceis e incertos, merecem mais do que a Champions, a Fórmula 1 ou a MotoGP.
As palmas do povo valeram mais. A música tocou-nos mais. O apoio incondicional da família, distante e receosa por nós, valeu mais. A união e o ombro do colegas valeu mais. As palavras de gratidão, de apresso, de força, de coragem, valeram mais.
Estive de férias, senhor primeiro ministro. Mas volto para mais trabalho, para dar oportunidade aos meus colegas que neste momento gozam as suas. Porque estamos a precisar disso mesmo. Descansar, desligar, recuperar forças e disponibilidade emocional e física para arcar com o que aí ainda está para vir.
Hoje visto a tal camisola, com todo o gosto. É domingo e estou a trabalhar há quase 16 horas de máscara em bico de pato, a vestir o fato quente de astronauta, os óculos de mergulho e a viseira embaciada, com menos gosto do que gostaria. Continuo a querer sorrir e a brincar com a criança doente que me procura, mas já não o faço como gostaria.
Hoje até há fogo em Viana, que aquece o céu que se sobrepõe às ruas sem gente. Seriam as festas da senhora da agonia, que não se realizaram. Mas os foguetes foram lançados e visto o espetáculo da varanda do Hospital.
Há sempre vontade de dar mais e melhor. Mas não nos facilita a vida assim, senhor primeiro ministro. Quem sabe, somos nós o lobo mau, mas não sabemos do capuchinho.
Diário de uma pandemia
23.08.2020
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