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Foto do escritorCarolina Germana

As sequelas de uma prisão



Iniciei o meu estágio de Medicina Geral e Familiar no mês passado. Com estas novas medidas de contingência, com as constantes alterações nas urgências, com uma lesão no joelho pelo meio – baixa, exames e tratamentos -, com a reorganização de horários para gerir, a verdade é que o número de crianças que tenho visto na minha prática clínica diária tem sido menor. Não sei se por ser em menor número, me dá mais tempo para as ver de facto e refletir sobre elas, ou se esta pandemia me abriu a visão de ver mais além. Seja como for, sinto-as mais próximas de mim a cada dia que passa e sinto-me mais atenta a pormenores que talvez antes me escapavam.


A passagem de ver diariamente crianças doentes, para ver crianças saudáveis em consultas de rotina, muda também a abordagem. Apesar de já o fazer em consulta, há questões a que dedico mais tempo aqui. Os problemas corriqueiros do dia a dia, as medidas preventivas, a interação familiar. Falamos sobre a segurança, os acidentes, a alimentação, os dentes, a escola e o brincar. Sobre a atividade e o sedentarismo. Sobre o comportamento, o desenvolvimento e as emoções. Enfim. Um sem fim de possibilidades de questões colocadas, de desafios criados e dúvidas que vão surgindo para conseguir avaliar a criança e a sua família como um todo.


Comecei este estágio passados 2 meses de pandemia, na altura em que se abriram portas. E os pais ainda vão a medo. Alguns com receio de sair à rua, continuam a segurar os miúdos em casa. Outros já a dar pequenos passeios, a levar a bicicleta e os patins para os passadiços à beira-mar. Alguns pais com mais criatividade e paciência para criar e entrar nas brincadeiras, para desenvolver competências dos seus filhos, para estimular e ensinar. Outros a entrar em pânico e em exaustão, entre afazeres do lar, ajudar nas fichas escolares, mantê-los atentos às aulas e ter sempre atividades de lazer pensadas para os distrair. Uns conseguem falar sobre o coronavírus, explicar de forma clara e adequada a cada idade, sem pormenores a mais, explicando o porquê de não poder estar com os avós ou com os primos. Outros não o fazem de todo, não explicam devidamente e por vezes não conseguem evitar transmitir a angústia e a tristeza que os próprios sentem. Uns têm filhos mais atentos e responsáveis, a cumprir os trabalhos da telescola sem grandes apoios. Outros têm filhos com graves problemas de concentração, de atenção, com dificuldade em cumprir as tarefas propostas e os pais sem capacidade para os ajudar.


Os miúdos, no início entusiasmados por estar em casa, agora fartos, têm saudades do convívio com os colegas e amigos. Os com irmãos próximos, vão-se entretendo entre eles, mas já puxam cabelos, dão beliscões e já não se podem ver à frente. Os filhos únicos, sem ninguém para brincar, isolam-se e sofrem sozinhos. Já cansados de estar fechados, eles querem sair à rua, ver ambientes novos, explorar. Querem conviver, brincar, abraçar e sentir a presença de outros.


Há uns dias, veio uma pequenina de 4 anos ao centro de saúde. Quando não viu a sua Médica de Família, alguém que lhe era familiar, entra assustada, de cabeça baixa, agarrada às pernas da mãe, suspiros profundos a meio de um choro meio que forçado e um olhar matador de desconfiança.


Entre soluços, aponta para mim com o seu dedo indicador: TU!


- “Tu não me vais pôr o pauzinho na boca.”

- “Tu não me vais pôr o cotonete.”

- “Tu não me vais dar uma pica no rabinho.”


Olhei para ela de sorriso escondido atrás do meu bico de pato e mostrei-lhe as minhas mãos vazias.


- “Não, A. Não tenho nada nas mãos, vês? Só vou pedir para abrires uma boca de leão e vou usar esta luz aqui do telemóvel para ver. Mas vou precisar de ouvir o coração. Deixas?”


Enrolada no colo da mãe, abana com a cabeça que sim, ainda de rugas na testa e olhos semicerrados.


Durante a conversa com a mãe, que terá durado uns vinte minutos, a perceber qual a razão pela qual a trouxe para ser vista por um médico, a A. começa aos poucos a olhar em seu redor. Não viu os habituais brinquedos que lá estavam antes. E ainda assim, captava com atenção tudo o que estava dentro daquelas quatro paredes. A certa altura, salta do colo da mãe e começa a explorar cada canto.


A A. ia-se transformando ao longo da consulta. De menina tímida e chorosa, passou rapidamente a falar pelos cotovelos. Falou da sua fofinha, a cadela de 5 meses, da sua bicicleta e das saudades dos amiguinhos da escola. Atenta e curiosa, queria saber para que servia o estetoscópio, o otoscópio e aquela lâmpada estranha ao pé da maca.


A A. pertencia a uma família complexa, com alguns problemas estruturais e funcionais. Não tinha irmãos a residir com ela. Estava sozinha com a mãe, que ligava a CMTV durante todo o dia, há mais de 2 meses.


Ali, naquele consultório, olhava para aquela criança de 4 anos, de olhos arregalados a mexer em tudo. Parecia que tinha sido libertada de uma jaula e que estava a brincar num parque. Tudo parecia novidade.


Se para nós nos pareceu uma eternidade este tempo a passar, imagine-se para eles. Se para nós foi difícil estar longe dos nossos, imagine-se para eles. As crianças absorvem muito mais do que aquilo que pensamos, sabem e sentem muito mais do que aquilo que queremos acreditar. E precisam muito mais de tudo aquilo que nós sentimos falta. Precisam dos outros, bem mais do que nós. Precisam da liberdade, do contacto, do brincar, de explorar. Precisam de estímulos novos a todo o momento. Precisam dos amigos, dos primos e dos avós. Precisam de tudo o que nos faz ser gente. E isso foi-lhes tirado de repente.


Quando pedi à A. para passar para a maca, ficou logo nervosa outra vez.


- “Vamos só ouvir o coração e abrir a boca de leão, como falámos”.


Mostro-lhe de novo as minhas mãos vazias, sem pauzinho ou cotonete. E a medo, de olhos fechados, abriu de tal forma a sua pequena boquinha, que me deixou ver tudo na perfeição.


Mas faltou uma coisa.


- “Então e a luz”?


Pois. Não tinha usado a luz do telemóvel, como lhe tinha falado no início da consulta, meia hora antes. Mas ela reteve aquela informação, bem guardadinha. Faltava de facto a luz.


A A. ouve tudo. Tem 4 anos. A A. estava em casa sem brincar com outras crianças, a ver os amiguinhos esporadicamente pelo ecrã e a ouvir o noticiário da CMTV durante todo o dia, a absorver tudo o que de lá vinha- A A. veio ao médico por andar a ter pequenos ataques de pânico, a gritar, a espernear, a ter pesadelos e a dormir mal. Que não acontecia antes. A A. tem medo, tem saudade e está cansada. A A. quer explorar, quer aprender, quer tocar e quer sentir.


Depois de uma longa conversa com a mãe, a tentar instituir uma mudança de hábitos lá em casa, está na hora de dizer adeus e esperar que a A. passe a ver mais desenhos animados e a folhear livros infantis. A tomar o seu banho quentinho e a ter um beijinho de boa noite na testa, aconchegada nos seus lençóis e abraçada ao seu peluche. A ir para a creche e a estar com os seus amiguinhos, a brincar e a aprender coisas novas.


A A. diz “xau” com a sua pequena mãozinha a acenar. Mas é mais forte que ela. Liberta-se da mãe e vem a correr até às minhas pernas, agarrando-se nelas. É impossível evitar o contacto. E deixo-a lá ficar, agarradinha, devolvendo em braços e envolvendo-me no abraço. Tão bom.


- “Xau, A.”.


De sorriso no rosto, lá vai ela de volta à sua mãe. Já de costas, fico a ouvi-la dizer ao longe:


- “Gostei muito da dotoia Calina”.


E assim a minha alma se enche e o meu coração se derrete. Mas não consigo deixar de me sentir de alguma forma impotente – o que será do futuro destas crianças? De que forma tudo isto as irá influenciar e moldar? E que papel posso eu ter para minimizar as sequelas desta prisão?


Estas e outras questões ficam no ar, para esta e outras tantas crianças, que só apetece dar colo e levar a passear.

 

Diário de uma pandemia 7.06.2020


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