Escolhi ser Pediatra. E ser pediatra implica fazer o internato de Pediatria, que implicam 5 anos de formação, além dos 6 de escola de medicina e 1 de internato geral. Implica trabalhar a tempo inteiro em vários hospitais diferentes ao longo dos anos, fazer 40h semanas, das quais 12h obrigatórias são em regime de urgência hospitalar e 4 extra semanais que nos são pedidas + 12/16/24h por semana quando necessário preencher buracos que surgem.
Ser interna implica dizer (quase sempre) que sim ao que nos é solicitado. Implica chegar a casa e não poder desligar ou jogar-nos no sofá, porque os trabalhos para apresentar, artigos científicos para escrever, relatórios para construir, protocolos para delinear, projetos de investigação para desenhar, intervenções na comunidade para contribuir, preparação de consultas do dia seguinte para melhor orientar os doentes que estão à nossa responsabilidade e a muita informação para estudar, não param.
Implica poder não estar presente no dia de aniversário de alguém querido, no casamento de algum amigo, não passar o natal com a família ou a passagem de ano a ver o fogo iluminar a baía da ilha.
Implica ter noites de pouco sono e dias de grande ansiedade. Implica lidar com o sofrimento humano e com a doença, dar más notícias. Implica tomar decisões rápidas, mesmo que menos acertadas e mesmo que já muitos cansados, ter raciocínio lógico e juntar peças de puzzle para se chegar a um diagnóstico.
Implica ter sensibilidade, humildade e criar empatia com quem trabalhamos e com os nossos doentes e respetivos familiares. Implica trabalhar em equipa e gerir conflitos. Implica ensinar e passar o conhecimento aos mais novos que chegam. Implica saber liderar, saber ouvir e saber calar.
Implica gastarmos muito dinheiro em formações, cursos e congressos para nos afundarmos em conhecimento. Implica ter um trabalho que exige a nossa presença física e apenas 22 dias úteis dos 365 dias do ano para podermos usufruir de escape.
Implica que a disponibilidade para escrever, dançar, viajar, fotografar, cozinhar, ler, ver uma série de que se gosta, estar com a família, amigos, companheiro, filhos, seja menos abundante do que o que se gostaria e que cada um desses prazeres tenha de ser distribuído pelas horas que nos restam. Implica que se tenha de abdicar de alguns sonhos por falta de tempo (e de espaço, emocional e mental) para os fazer acontecer.
Aos 18 comprometemo-nos com o estudo a longo prazo. Aos 25, se tudo correr de forma linear, comprometemo-nos com 5 anos disto de ser interno de formação específica numa área e num local que escolhemos de acordo com várias premissas. Já trabalhamos a tempo inteiro e recebemos naturalmente para o fazer. Mas somos eternos estudantes, investigadores e professores também, além horário.
Vou no penúltimo ano desses 5. Não acho que tenha abdicado de ser eu ao longo do percurso, mas dei voz às diferentes eus dentro de mim nas diferentes alturas da minha vida, às vezes mais, às vezes menos. Mas tive de aprender, entre alguns períodos de maior ansiedade, que não posso querer ser todas as eus ao mesmo tempo. Fui aprendendo que nada se perde ao me ir somando e subtraindo, encontrando e desencontrando com umas e outras ao longo do tempo.
Hoje sinto que vou conseguindo um melhor equilíbrio dessas todas que existem dentro de mim. Quanto mais vou de encontro a esta estabilidade, mais chego à conclusão de que a minha vida profissional e pessoal não existem uma sem a outra e que ambas se entrelaçam como amantes que são e que eu sou um bocadinho de todas as bailarinas que dançam na minha vida ao som da melodia que vou criando para ela.
Eu escolhi ser médica. Pediatra. Fotógrafa. Escritora. Exploradora. Eu gosto de dançar, tocar e ouvir rock, pop, bossa nova, jazz, r&b, reggae, soul, house. De ver filmes e ler livros. De viajar e perder-me por ruas desconhecidas e abraçar diferentes culturas. Ver cidades iluminadas apinhadas de gente e observar a vida selvagem nas florestas e rios. Gosto de receber amigos em casa para jantar e passar o fim de semana em família. De rir e beber um copo. Quero um dia ser mãe. Escolho fazer desporto, cozinhar e nutrir bem o meu corpo. Escolho produzir, criar, iniciar projetos. Escolho ser ativa, mas conseguir parar para me ouvir respirar e esvaziar a mente.
Escolhi ser médica aos 18 anos. Escolhi ser pediatra a um mês de fazer 25. Terminarei o meu internato aos 30, se tudo continuar a correr de forma linear. Ser médica é uma grande parte de quem sou porque me consome o tempo que me impede de ser todas as outras que quero ser ao mesmo tempo. Ser pediatra foi a escolha que fiz para que este tempo fosse dedicado ao que defini como propósito para a minha vida. E se por um lado não sinto que a minha profissão me defina, por outro ela faz parte da minha essência e vai vivendo de mãos dadas com todas as outras Carolinas que sou. Todas as que fui deixando pelo caminho, as que fui aprendendo a ser e acredito que com todas as que ainda serei.
Sou várias eus dentro de mim.
O interno escreve 06.03.2021
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