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Foto do escritorCarolina Germana

A vida que escolhi

Atualizado: 11 de nov. de 2020



Ontem estive as dezasseis horas habituais de serviço de urgência, que ultimamente têm sido uma a duas vezes por semana. Já se começou a sentir, a par desta segunda vaga, um aumento da afluência aos serviços de urgência também na pediatria. Como em qualquer outro ano, aumentam as procuras por aumentarem as infeções virais, principalmente as respiratórias, com as febres, tosses, a congestão nasal e dificuldades em respirar. Mesmo assim, há um ano, por esta altura, víamos cerca do triplo de crianças em serviço de urgência com doença que variava de ligeira a grave, quem sabe se já algumas infeções por SARS-Cov2 à mistura, sem que dele tivéssemos conhecimento.

Este ano, trabalhar nas condições que a complexidade daquilo que vivenciamos exige, é particularmente cansativo e literalmente doloroso. Saímos exaustos dos nossos turnos e vemos em média 10 a 15 doentes cada um. Não sei se neste inverno chegaremos aos 30-40 da época passada, mas caso aconteça, não sei como nos vamos aguentar.

Trabalhar dói, fisicamente, durante horas. Vamo-nos revezando, quando podemos, entre área Covid e área não-Covid, para evitar tempos demasiado longos com o Equipamento de Proteção Individual (EPI) completo, para nos podermos alimentar e tratar das nossas restantes necessidades básicas. Duas horas com o EPI já é suficiente para sentir a cabeça a latejar, a pressão da touca e viseira e o efeito de vácuo que os óculos de mergulho exercem sob os óculos de vista que estão por baixo. Quando muitas vezes as estadias se prolongam durante 4-6 horas, saímos de lá com a face marcada, por vezes em ferida, com olhos encovados e exaustos.

Trabalhar dói, emocional e socialmente. Temos dificuldade em criar empatia com a criança e em transmitir segurança sem oferecer o sorriso, sem interagir com o colo, com o brincar ou a dar desenhos para pintar. Temos de arranjar analogias como o astronauta ou o extra-terrestre, como a entrada no espaço ou o mergulho no mar. Fingir que a mão é azul e o cotonete é varinha mágica que vai tirar o bicho mau. O único brinquedo que temos à disposição é o estetoscópio, que ouve os corações pequeninos a bater a mil, já não por medo do médico, mas por medo do teste que virá e do que ele significa. O olhar de uma mãe em pânico é difícil de tranquilizar e a ansiedade dos pais, crianças e adolescentes difíceis de gerir, porque além de virem organicamente doentes, só conseguem pensar “no Covid”, com consequentes pesadelos, dúvidas e angústias que “ele” traz. Dói, cá dentro, saber que temos de conseguir tranquilizar sem estarmos propriamente tranquilos e ter de transmitir segurança sem estarmos 100% seguros de algo tão inespecífico como é esta doença.

Hoje, trabalhar dói. Dói saber que tudo isto vai ter influências drásticas no desenvolvimento do bebé que nasceu sem conhecer sorrisos de estranhos e sem identificar o cheiro e toque dos seus avós. Saber que a criança brinca com a palavra “Covid” como sendo o mau da fita e o utilize diariamente no vocabulário. Que não abrace os seus amigos nem aprenda a partilhar os seus pertences. Que não participe em jogos e desportos de equipa e não aprenda sobre regras, sobre se desafiar, sobre cair, sujar e levantar. Dói que saibamos que estamos a piorar o nosso atendimento, a nossa observação, raciocínio, diagnóstico e orientação da doença Covid e não Covid. O espaço é menor e é difícil de trabalhar em equipa. Demoramos o dobro ou o triplo a ver cada doente, entre histórias clínicas, exames objetivos, pedir exames complementares de diagnóstico, preencher a ficha de declaração obrigatória da doença, tira luvas, põe luvas, desinfeta estetoscópio, desinfeta maca.

Chego a casa e não consigo adormecer. O corpo não responde à necessidade do sono e a mente teima em continuar a correria, tal é adrenalina a correr ainda nas veias.

Hoje não tive de entrar às 8h e fiquei a aproveitar a minha manhã. Tive tempo para respirar e refletir mais uma vez nesta que é a minha vida. “A vida que eu escolhi”. Estava a sentir um nó na garganta e um aperto no peito, porque isto da ansiedade não acontece só aos outros. Não tinha propriamente razão que a justificasse, mas ela estava lá e estava difícil de saltar fora.

Fui dar um passeio à beira-mar, porque o sol brilhava neste dia de novembro. A ouvir o som do mar enrolar na areia e as gaivotas em melodias, respiro a brisa do mar. Este meu refúgio não tem como falhar.

“A vida que eu escolhi” não foi esta, mas foi este o compromisso que fiz.

O compromisso para com a A. de 5 anos, que ontem apareceu na urgência e quando me vê, mergulhada em lágrimas, me reconheceu imediatamente debaixo daquela fatiota e diz: - “É a dotoia Calina!”. Seca as suas lágrimas e esboça-me um sorriso, enquanto ouve a explicação de tudo o que lhe faço com a máxima atenção, entre suspiros. Depois de informada, aceita fazer o famoso teste do qual ouve falar apenas na televisão. Colabora, sem pestanejar. Depois, como combinado, vem-me dizer o que sentiu. “Dotoia Calina, tinha razão, porque não doeu, só fez impressão”.


É o compromisso com o C. e a sua mãe que depositam em mim a confiança para corrigir os seus estilos de vida, com a I. e o S., gêmeos que sigo desde os dois meses e que já andam, correm, falam e enchem o meu gabinete de alegria sempre que lá entram; com o M. que luta pela própria vida e com a L. que a ilumina.

É o compromisso de ser médica, de tratar os males do mundo e da natureza biológica, psicológica e social duma criança e sua família. Especialmente em tempos como este. É o prazer que me dá ter a capacidade e a possibilidade de poder olhar pelos mais pequenos e de alguma forma orientar e tranquilizar a sua mãe ou pai. É aprender com eles, todos os dias, que o mundo é mais fácil, divertido, descomplicado e simples pelos seus olhos. É estar na cama do hospital e olhar a vista do rio a desaguar no mar, as luzes da avenida e a árvore iluminada no final, dizer olá às gaivotas que visitam as janelas e com elas fazer conversa.


É tudo uma questão de perspetiva e expetativa. Trabalhar dói. Mas acordo sempre na esperança de trabalhar com estes pequenos coraçõezinhos que me adoçam o dia e me fazem lembrar porque aqui estou.


Sim, foi esta a vida que escolhi. E melhores dias virão.

 

Diário de uma pandemia 10.11.2020

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