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Foto do escritorCarolina Germana

A esperança é a última a morrer


Estou sentada na minha nova varanda. A vista não é mais para o mar e não vejo o pôr do sol. Mas oiço os pássaros a chilrear pela manhã e as folhas das árvores começam lentamente a se vestirem de verde.


Um ano de pandemia.


Depois de termos recebido a notícia do novo coronavírus na China e da epidemia se ter alastrado para a Europa, de Itália ter sido atingida de forma dramática e dos casos terem aparecido primeiro no nosso país vizinho, eis que, a 2 de março de 2020, surge o primeiro caso do novo coronavírus em Portugal. Rapidamente deixou de ser apenas “importado” e passou a haver a “transmissão comunitária”. Demorámos algum tempo a perceber o impacto que isto teria nas nossas vidas, mas a sequência cronológica das primeiras semanas de março demonstram a rapidez com que tudo isto se desenrolou e como num abrir e fechar de olhos, o pânico se instalou e as mudanças começaram.


Dia 6 de março de 2020 ainda fiz viagem para Lisboa. Já sabíamos que ele andava por cá, mas não queríamos saber. Fui ver a exposição do Harry Potter no dia seguinte e tinha uma festa de amigos para celebrar e dancei entre abraços e gargalhadas até de manhã.


Dia 9 de março de 2020 regressei ao trabalho e começava-se a pensar com alguma leveza, em formas de trabalhar com este novo vírus a circular. Mas tínhamos tempo.


Dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde declarou pandemia por Covid-19.


Dia 13 de março de 2020, o pânico. Mudava-se e reestruturava-se todo o serviço, cancelavam-se todas as consultas e repensava-se em novas formas de trabalhar na urgência. Os olhares de medo assombravam as paredes do Hospital, nos assistentes, operacionais, técnicos, enfermeiros e médicos. Nos doentes que, de repente, deixaram de aparecer.


Dia 15 de março de 2020 a M. voltou de São Paulo, a mãe, o T. e os primos estavam todos alojados na quinta dos avós, os avós isolados e o A. a começar a trabalhar de casa. Andava a ler informação quase a cada minuto, para me atualizar com os novos dados que surgiam, novas normas, novas orientações. Dormia mal a pensar em formas de organizar equipas e a o ambiente de trabalho tornou-se pesado, com discussões acesas quase diárias.


Dia 17 de março de 2020 fiz a minha primeira urgência com tudo novo. Máscaras, fatos, viseiras, botas. Parecíamos extra-terrestres, astronautas, mergulhadores. Acabou-se o estetoscópio ao pescoço e o bolso da bata recheado de canetas coloridas e divertidas para os mais pequenos. Acabou-se a partilha de sorrisos. Tivemos o primeiro caso positivo entre médicos do nosso serviço e acabámos todos em fila indiana, parecendo um alistar para a guerra, na espera para aquela que foi a nossa primeira colheita com a zaragatoa para pesquisa do SARS-Cov2. Tomava banho sempre que chegava a casa e dormia separada do A., tal era o receio de levar do meio hospitalar para casa aquele bicho desconhecido e imprevisível.


A 18 de março de 2020 foi decretado estado de emergência em Portugal. As prateleiras dos supermercados ficaram sem produtos, as pessoas pareciam baratas tontas a circular, a afastarem-se umas das outras com medo no olhar e as ruas cada vez mais vazias. O receio pelos familiares, de quando os veria de novo, de quando os voltaria a abraçar. Foi também neste dia que parei em casa e me senti exausta. Física, emocional e mentalmente. Foi neste dia que finalmente senti necessidade de refletir sobre a intensidade de tudo o que se tinha acabado de passar. E escrevi, pela primeira vez em anos.


Dia 19 de março de 2020 recebi o meu primeiro resultado negativo naquele que passou a ser o teste em que uma pessoa festeja tal nota. Chorei. Voltei a dormir com o A. e não voltámos a fazê-lo de outra forma.


Já passou um ano.


Um ano sem encontrarmos amigos nas ruas da baixa e atirarmo-nos num abraço profundo. Um ano sem cumprimentarmos o outro com dois beijos. Um ano sem ir ao cinema ao som crocante das pipocas a serem devoradas pelos espetadores. Um ano sem ir à cave do Rendezvouz e movimentarmos o corpo com a música, apertados que nem sardinhas em lata. Um ano sem ir a um bar, brindar e provar do copo do amigo. Um ano sem roubar comida do prato do lado. Um ano sem viajar para longe, explorar novas cidades, sentir novos sabores, conhecer novas culturas. Um ano sem explorar e conhecer o resto do mundo. Um ano sem ir a um concerto ou um festival de música, de ver caras novas e circular por entre mares de gente de copo de cerveja na mão, roupa descontraída e felizes com a vida. Um ano sem estarmos com tios e avós com descontração e leveza, entre gargalhadas e mãos dadas. Um ano sem sairmos de casa sem medo, sem apreensão, sem dúvida. Sem taparmos o sorriso.


Um ano de decisões difíceis. De perda. De saudade. De pobreza e solidão.


Um ano sem passar um dia sem falar ou ouvir falar deste monstro que nos veio atormentar a todos. Um ano em que o Mundo sofre. Pela sua causa ou consequência. Um ano em que os mais pequenos não conhecem toda a sua família ou pouco ou nada interagem com ela. Um ano sem ir dormir a casa do amigo. Um ano sem ir ter com um desconhecido no jardim, dar-lhe a mão e brincar, por receio da reação dos pais.

Um ano também ele transformador. De reflexão. De mudanças. De reinvenções. De criatividade. De resiliência. De união com a família e conexão franca com os verdadeiros amigos que ficam para a vida. Um ano de aceitação perante a imprevisibilidade da vida.


Um ano a ler o sorriso nos olhos e a criarmos relações entre olhares. Em que aprendemos que os 2/3 inferiores da face são a nossa cara e aprendemos a lidar uns com os outros sem lhes conhecermos o verdadeiro rosto. Em que fizemos da nossa casa o nosso lar, o nosso refúgio, ao mesmo tempo que se tornava também um local de trabalho e de preocupações. Em que aprendemos que os planos não passam de planos até à sua concretização e que de um dia para o outro podemos ter de os cancelar ou adiar.


Um ano depois, habituámo-nos. Porque a adaptação da natureza humana assim o dita, para podermos (sobre)viver. Mas estamos cansados. Todos. Tão cansados. Continuamos a não aceitar que assim seja a vida. Limitada. Confinada. Estamos sedentos por voltar àquilo que era. De podermos voltar a sair à rua sem máscara. Sem medo de abraçar, acariciar, beijar. De trocar sorrisos com os mais pequenos ou com desconhecidos nas ruas da cidade. Estamos com vontade de voltar a passear nos jardins, a percorrer a baixa da cidade cheia de som e movimento e de comer um gelado a descer a Rua das Flores. Estamos a precisar de voltar a conviver com amigos e familiares sem sentimentos de culpa. Os mais novos precisam de construir novas amizades, de rir e de correr. Os mais velhos precisam de sentir que não estão sós e de poder apertar uma mão familiar no momento de partida, estejam onde estiverem.


Um ano depois, continuamos a acreditar que a tempestade irá passar. É o que nos mantém em constante busca daquilo que nos faz sentir bem, sem nos deixarmos apagar. E assim se passa o tempo, que não mete pausa e nos foge das mãos a cada segundo. Temos de continuar a sonhar e a lutar, porque a fé e a esperança são o que nos move de encontro a um dia melhor. Temos de olhar para dentro e cuidar de nós. Temos de olhar para o lado e cuidar do outro. Arranjar forças para compreender também o seu sofrimento. Perceber que há sempre alguém com mais dificuldade que nós, mais doente que nós, mais triste que nós, mais só que nós. Temos de nos manter unidos e relativizar.


Temos de dar as mãos. Sentir o sol. Continuar a viver. Vamos olhar o céu azul. Ouvir os pássaros chilrear e ver as flores a aparecer.


Nisto tudo é quase primavera de novo. E a esperança é a última a morrer.

 

Diário de uma pandemia 18.03.2021

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